Um jovem com 15 anos vindo de Arcos de Valdevez chega a Lisboa com a mãe. Está habituado a cantar em bailaricos, arraiais, quer é festa, o fado ainda não lhe chegou. A mãe, que, sendo mãe, acha que o filho pode ir mundo fora com a voz, pega nele e percorre a noite da capital para o mostrar a quem o queira ver e ouvir e aos outros. Não havia amigos, casa ou trabalho. O pai ficou no norte do país. “A grande responsabilidade de eu ser intérprete e de me ter apaixonado pelo fado, conseguindo construir uma carreira, é da minha mãe”. É assim que o fadista Marco Rodrigues, que esta sexta-feira apresenta ao vivo, no Teatro Tivoli, em Lisboa, o seu sexto álbum, “Judite”, resume a importância da mãe ao Observador, que morreu em 2020.

Foram muitas noites em casas de fado, outras a percorrer páginas amarelas até encontrar o nome de um guitarrista do Café Luso. Tudo para que Marco Rodrigues tivesse uma oportunidade de mostrar os seus talentos a um género que ainda não lhe tinha entrado pela alma dentro. Porque para o futuro fadista, a ideia de estar sentado em silêncio, atento só à voz, de luz baixa e pouco mais, não fazia sentido. Toda aquela vida dentro das festas populares era demasiado vibrante para ser trocada pelo fado. Mas mãe é mãe. Foi a sua teimosia que mudou o pensar do filho. “Nos primeiros dois anos em Lisboa, ela queria dar-me a conhecer, ver se podia cantar, levou dezenas de nãos. Eu até podia fazer isto muito mal, mas a minha mãe sempre acreditou em mim. Acompanhou-me na noite de Lisboa, a apresentar-me. Depois levava-me para a escola e ia trabalhar às seis da manhã”, confessa.

[“Amar para Sofrer”, do novo álbum “Judite”:]

E são esses tempos, “dolorosos” para a mãe, mas feitos com muita paixão, construídos praticamente nos 30 anos em que viveram juntos (mas não só), que se sentem neste Judite, com onze temas, entre o fado tradicional e a pop, entre conversas de mãe e filho e colaborações com nomes como Diogo Piçarra, Marisa Liz, Tiago Pais Dias ou Boss AC. O álbum, o mais longo da discografia de Marco Rodrigues, começou a ser trabalhado antes da pandemia e da morte da mãe.

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Os temas tradicionais já estavam escolhidos, faltava tratar das letras. E claro, a já recorrente intenção do fadista em misturar géneros e manter a marca popular, confundindo-a com os códigos da pop, nem precisava de mais acertos. Essa é para continuar. “Venho da música popular, vivi num ambiente em que a minha música era de arraiais e de festa. Gosto de cantar poemas bem escritos. A música só tem duas formas de se ouvir: ou se gosta ou não se gosta. E esta é uma homenagem, está salvaguardada das críticas. Sou um fadista a cantar temas que não são fados”, defende.

[“Eu sou do Roque”:]

Dá, por isso, o exemplo de canções como “Amar Para Não Sofrer”, que “não é fado nenhum”, mas sim uma canção cantada e interpretada por um fadista que terá, como é lógico, um resultado diferente. Mas nem pior nem melhor. Porque não é preciso trancar um estilo sobre si mesmo. Um fadista pode ser também ator cantor, intérprete, com uma boa fotografia e musicalidade, desde que esteja a fazer aquilo que gosta — “Eu Sou do Roque” tem dedo de David Fonseca. E Marco Rodrigues gosta muito daquilo que está a fazer. “A Amália teve problemas do mesmo género. Se não existisse este tipo de medos e de preconceitos, de fechar o fado numa redoma, se calhar não havia fado”, diz.

Agora, a tour “Saudade em Teu Lugar”, que dá o pontapé de saída no próximo dia 1 de abril, sexta-feira, com Lenita Gentil, Marisa Liz e Diogo Piçarra como convidados, leva toda esta relação entre mãe e filho para o palco. Marco Rodrigues precisou de um ano de luto, de tempo para processar, mas diz-nos que chegou onde precisou. Logo ele que, tal como tantos outros artistas, foi obrigado a cancelar vários concertos nos últimos dois anos. “Não quis fazer televisões durante um ano para ficar bem resolvido comigo, se é que isso é possível. Houve muita gente com as suas atividades interrompidas, eu tive um filho”, conta. Hora de se virar para o inevitável Faltarão as conversas com a mãe. A confidente. O “amor transparente”.