Existe um subgénero do cinema fantástico, as adaptações de contos populares, tradicionais ou de fadas (como preferirem) ou as variações sobre os mesmos, de que “A Companhia dos Lobos”, de Neil Jordan (1984) é um dos mais brilhantes representantes, e em que podemos incluir também uma fantasia cómico-aterrorizante como “Os Irmãos Grimm”, de Terry Gilliam. Pois agora chega-nos – e surpreendentemente — da Islândia, mais um exemplo deste subgénero. É “Cordeiro”, o filme de estreia de Valdimar Jóhansson, que assina o argumento a meias com Sjón, escritor, poeta, letrista de Björk e colaborador ocasional dos extintos Sugarcubes.

[Veja o “trailer” de “Cordeiro”:]

Maria (Noomi Rapace) e Ingvar (Hilmir Snaer Guonason) vivem numa quinta isolada onde lavram os campos e criam carneiros. Um dia, e depois de numa noite de mau tempo uma estranha e ameaçadora presença ter rondado a propriedade, uma das fêmeas dá à luz uma criatura híbrida de humano e de carneiro. Mas em vez de a matar ou de a levar à cidade para ser examinada por cientistas, o casal encara-a com normalidade, fica com ela e começa a criá-la como se fosse um bebé normal, um filho seu. E até lhe dá um nome, Ada (a explicação para esta reação de Maria e Ingvar vem mais adiante no filme, que pede alguma paciência ao espectador. “Cordeiro” é “slow cinema”, mas nunca chato).

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[Veja uma entrevista com o realizador Valdimar Jóhansson:]

Dizer mais sobre o enredo de “Cordeiro” é estragar o filme para quem o irá ver. O que há que frisar aqui é que Valdimar Jóhansson não quis fazer apenas uma fita de terror sobrenatural (pelo menos, até aos 10 minutos finais) e que “Cordeiro” é um exemplo original, intrigante e absorvente de uma narrativa inspirada em histórias, figuras e ambientes do folclore da Islândia, contada num cenário contemporâneo. Johansson não só consegue inscrever o elemento fantástico no cenário banalmente quotidiano (o dia-a-dia de um casal na sua quinta), como também fazer-nos aceitar a atitude de Maria e Ingvar para com Ada (simples e eficazmente caracterizada e antropomorfizada com efeitos digitais), mas mantendo sempre imanente uma atmosfera de estranheza — e de antecipação de que algo de terrível pode vir a acontecer.

[Veja uma entrevista com Noomi Rapace:]

Além de utilizar a paisagem e as condições atmosféricas (até meio, o filme vive sob um céu constantemente carregado, e entre chuva e neve) para instalar, sugerir ou sublinhar climas emocionais e íntimos das personagens, e momentos de “suspense”, o realizador faz de “Cordeiro” um modelo de cinema de exposição essencialmente visual, tão parcimonioso de palavras e de diálogos como abundante em silêncios, não-ditos, subentendidos, gestos e olhares significativos. “Cordeiro” está nos antípodas daqueles filmes americanos que vivem em agitação sonora e estridência contínua, e até o acordar de um pesadelo é totalmente diferente do que manda o lugar-comum: calmo e mudo em vez de sobressaltado e aos gritos.

[Veja uma cena de “Cordeiro”:]

O horror acontece só, e finalmente, quando Ada vem ser resgatada aos pais adotivos por quem está na sua origem, numa conclusão tão tremenda como inevitável, e que como que deixa no ar uma lição: é arriscado interferir com as mitologias ancestrais e as criaturas que as povoam. “Cordeiro” é um magnífico, raro e trágico filme fantástico de raízes folclóricas, e felizmente longe, muito longe, das apropriações e deturpações hollywoodescas das histórias tradicionais e da sua espectacularidade bombástica e oca.