O segundo romance de Marta Orriols veio com uma premissa que poderia cativar os leitores. Aqui, Dani e Marta são um casal. Vivendo juntos há dois anos, descobrem que Marta está grávida. A ideia do romance é explorar as dúvidas que os afectam perante o cenário de uma gravidez não planeada. Dani quer cumprir uma promessa antiga, de nunca abandonar um filho, e esta ideia aparece repetida apesar de nem haver filho na história. Marta não tem qualquer vontade de ser mãe. Um e outro têm perspectivas diferentes sobre o que querem da vida e de uma relação.

Podia ter sido um romance em que se mergulhava a sério nas dúvidas, no desfasamento de expectativas, na angústia, até na frustração de não convencer o outro. Contudo, a prosa, eivada de pó, passa o tempo todo às voltas, impedindo a imersão. Não há, ao longo de 238 páginas, um laivo de rasgo ou incisão. Frequentemente, o romance é explicativo e dramático, e a autora tem uma tendência sofrível para explicar a priori o que vai dizer a seguir. Assim, o que parece ter o intuito de criar devagar um cenário é apenas a frustração da surpresa e uma espécie de patinagem sobre o conteúdo. Um leitor deve ser manipulado, e Orriols coibiu-se de qualquer manipulação: deu a informação toda ao mesmo tempo, o que a impediu de surpreender e agarrar. A prosa é direitinha, bem comportadinha, num esforço denunciado de calibrar a acção, mas falta que seja limada e cortada. Numa arte em que se procura o osso, o livro chega quase apenas com gordura.

Título: Doce introdução ao caos
Autora: Marta Orriols
Editora: D. Quixote
Tradução: Maria João Teixeira Moreno
Páginas: 240

Ao mesmo tempo, sente-se que a autora se esforça por fazer durar a narrativa, o que faz com que esta saiba sempre a coisa periférica. Aparecem episódios paralelos em flashbacks que dão informação sobre as personagens, mas que nunca as compõem – e, assim, não compõem a narrativa. Ao mesmo tempo, parecem perseguir os clichés. E não é que os clichés não sejam boa matéria de romances – a vida está cheia deles, e é por isso que são clichés. Mas, para os tratar em prosa, convém que existam dentro de um espectro relacional que os torne operantes na narrativa. Em vez disso, só há mesmo o cliché, o discurso que ouvimos mil vezes, e o leitor avança mais uma página com a sensação de que lá vai a uma igual outra vez. Exemplo:

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“O primeiro ano da universidade foi um abanão que lhe reorganizou o mundo. A possibilidade de viver outra vidas, liberdade, textos que o interpelavam e lhe falavam de coisas até então vividas apenas em silêncio.” (p. 101)

Ao explicar permanentemente, a autora não deixa qualquer espaço para a acção do leitor. A este, cabe fazer de recipiente da prosa, o que anula o romance enquanto relação dialógica. Ao explicar, a autora não põe em cena, não mostra, e o leitor não tem o que interpretar ou discutir. O drama já vem mastigado, o leitor passa pelo infortúnio de se deparar com as conclusões. Outro exemplo:

“São filhos da democratização das viagens. Ele não pretende conquistar destinos, não desfruta tanto da deslocação física como desfruta de encontrar pérolas nas margens, ou dos instantes irrepetíveis, do inesperado, das pessoas.” (p. 73)

É um dos muitos exemplos em que a autora podia ter mostrado episódios ou diálogos que levassem o leitor a esta – ou a outra – conclusão. Ao encaminhá-lo assim, estupidifica-o. Resta-lhe ler e acreditar, ler e absorver. O narrador aparece sempre de cima, perdendo-se a ligação às personagens. Num romance que devia versar sobre tantos aspectos da vida, tudo sabe a superfície. O drama de Dani e Marta passa-se sempre ao longe num romance que se torna mais vivo quando a autora dá voz às personagens, o que acontece raramente.

Dani tenta que se cumpra em Marta o desejo de ser pai, e teríamos aqui matéria para vísceras. Mas, ao explicar permanentemente, Orriols rouba as vísceras. O leitor pode ler a cólera, mas não a sente. Há uma parte, em que é dito que Dani “irrompe com frases incompletas tentando feri-la, frases que começam com um tom de desdém mas que não morre em parte nenhuma, apenas sugerem, és uma…. és tão… só pensas em…” (p. 194), que ilustra bem isto. Aqui, Orriols perde a oportunidade de pôr o leitor em cena. Conta em vez de mostrar – quando é mostrar em vez de contar que cria o vínculo, pelo menos em romances escritos na terceira pessoa. Ao seguir esta estratégia, tirou qualquer sombra de força ao romance, que, assim, parece uma oportunidade perdida. A premissa é boa, a execução fica a milhas.