Com Torto Arado, Itamar Vieira Junior conquistou o público e a crítica. Não há memória recente de um fenómeno assim em literatura lusófona. Com um romance coeso, Itamar venceu o prémio LeYa, o prémio Jabuti e o prémio Oceanos. De desconhecido a coqueluche da literatura brasileira, foi um salto – e um salto que lhe custou 10 anos de escrita.

De repente, a atenção sobre o autor baiano adensou-se. O romance de estreia foi um marco importante na criação lusófona, seguindo-se à publicação de dois livros de contos. Este Doramar ou a Odisseia, publicado pela Todavia no Brasil, que também publicou Torto Arado, recupera alguns dos contos de A oração do carrasco, publicada em 2017 pela Mondrongo, e que foi finalista do Prémio Jabuti, acrescentando mais alguns nunca lidos (das 12 histórias agora publicadas, 5 são inéditas).

Depois de um romance calibrado, a expectativa em torno do autor era grande. Doramar ou a Odisseia volta a um universo conhecido, mantendo a prosa de altíssima qualidade. Sem solavancos, o autor manipula o tempo com mestria, em contos em que o social é um elemento interno da narrativa. Parte do fôlego reside nas descrições físicas, que quase saem do papel. Em meia dúzia de pinceladas, o leitor fica a pés juntos no cenário, com personagens que nunca deixam de saber a gente a sério.

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Título: Doramar ou a Odisseia
Autor: Itamar Vieira Junior
Editora: D. Quixote
Páginas: 200

Como no romance, os contos destacam-se pela mestria narrativa. Vieira Junior empenha-se em cada palavra como um traço – tudo é funcional, tudo compõe um mundo. As personagens têm uma arquitetura sólida, a linguagem é apurada, incisiva, com um leve tom poético. Os temas voltam-se novamente para as questões sociais do Brasil, recuperando o interior e a terra, os povos indígenas marginalizados, as vidas fora dos grandes centros urbanos, os hábitos que foram deixando de ter lugar no centro das narrativas, as religiões, o embate com um Brasil cuja elite tem outra ideia de país.

Itamar foge ao eixo Rio-São Paulo, e é por isso que o que nos dá é tão fresco e surpreendente, recuperando a tradição literária de autores como Graciliano Ramos ou Guimarães Rosa. Ao entrar nesta tradição literária, o autor não chuta para canto a sua contemporaneidade: ao pegar nas raízes, mostra a árvore, dando ao leitor uma floresta. E essa floresta aparece também como conflito do Brasil actual: a sua destruição, quem vive nela, o que separa.

Itamar Vieira Júnior: reclamar o romance de novo para a Bahia

Desta Brasil assente em escravatura (como já se viu em Torto Arado), surge um conto como “Alma”, inédito até agora. Aqui, a personagem larga o cativeiro durante a escravidão, no século XIX. Fugindo, faz centenas de quilómetros a pé. No seu longo monógolo, temos um mundo:

“(…) eu, uma mulher indigna, carreguei para dentro de mim o sofrimento que infligiam à minha pele, nos atos, nas crianças brancas de quem cuidei, aquela senhora, aquela mulher, e as irmãs do meu senhor, elas reclamando do meu chá, reclamando da minha comida, rindo sorrateiras, eu como um bicho acuado, meus olhos tão logo ficavam vermelhos, porque elas me lançavam a todo momento desfeitas, eu sofria” (p. 49)

Itamar Vieira Junior pega nos grandes temas da humanidade com as mãos – e as mãos estão também cheias de terra. Com uma delicadeza ímpar, o autor brasileiro destaca-se ainda por uma sensibilidade que o marca. O exímio trabalho de linguagem, aliado ao tratamento de conflitos sociais, permite-lhe extrair do único o universal, razão pela qual Itamar chegou à literatura lusófona para ficar.