A entrada de processos no Tribunal da Concorrência com prazos de prescrição próximos do limite acaba por exercer uma “pressão inadmissível sobre o juiz que decide”, defendendo a juíza Vanda Miguel o “repensar do regime de prescrição”.

Em entrevista à Lusa, por altura dos 10 anos de existência do Tribunal da Concorrência, Regulação e Supervisão, a funcionar desde 30 de março de 2012 em Santarém, a juíza titular do Juízo 3 (J3) do TCRS defendeu a dilatação do prazo máximo de suspensão da prescrição, especialmente quando o processo é recebido no tribunal.

Também em entrevista à Lusa, Mariana Gomes Machado, titular do J1 do TCRS, frisou que, quando entram processos “na iminência muito iminente de prescrição”, complicam o planeamento, gerando um “efeito muito indesejável e muito injusto” para processos já agendados, sob o risco de se passar a mensagem de “quem manda os processos urgentes passa à frente”.

Com início do julgamento de mais um recurso do Montepio a coimas aplicadas pelo Banco de Portugal marcado para 4 de maio, foi distribuído, no final de março, ao J1, o pedido de impugnação do BES à coima de 2,8 milhões de euros a que foi condenado pela Comissão do Mercado de Valores Mobiliários (CMVM), com prescrição a 26 de novembro próximo.

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Vanda Miguel sublinhou a “pressão acrescida quando os processos chegam, das entidades administrativas, a Tribunal com prazos de prescrição quase à beira do seu limite, o que contende com o tempo e a serenidade na apreciação dos factos e das questões jurídicas suscitadas, tão importante para uma decisão com justiça”.

Como exemplo apontou o processo do BES com coimas totais de 4.750.000 de euros, também vindo da CMVM, distribuído em 15 de outubro de 2021 e com prescrição em 18 de maio deste ano, cuja sentença proferiu no passado dia 15 de fevereiro.

“Proferir uma sentença num processo desta complexidade em cerca de quatro meses, por um único juiz, sem qualquer outro apoio (mormente assessoria ou exclusividade) implicou um esforço acrescido, com vários sacrifícios para a vida pessoal e familiar desse juiz”, disse.

A criação de um Gabinete de Apoio aos Magistrados Judiciais na Comarca de Santarém, no início do mês, com três assessores, um na área jurídica, outro de contabilidade e finanças e outro em psicologia, irá mitigar, mas não resolver a necessidade de assessoria, salientou, por seu turno, Marta Campos, titular do J2.

“É um princípio e isso é positivo. Contudo, não deixa de ser insuficiente para as necessidades do Tribunal, pelo menos no que respeita aos assessores jurídicos”, disse, salientando que as sentenças dos processos de especial complexidade “envolvem muito trabalho e exigem um grande esforço”.

“Nos processos com risco de prescrição próximo, a vida pessoal fica muito comprometida”, frisou.

Também Mariana Machado considera a existência do gabinete “melhor que nada”, lembrando que ele servirá a Comarca de Santarém, à qual o TCRS, sendo um tribunal de competência alargada (de nível nacional), não pertence, mas ao qual poderá recorrer, por estar sob a gestão da comarca.

Não havendo resposta aos pedidos de atribuição de um assessor jurídico a tempo inteiro a cada um dos três juízos do TCRS, a juíza considera que outra solução seria a existência de um quadro de funcionários juridicamente forte e com uma equipa adstrita a cada um dos juízos.

Vanda Miguel apontou, ainda, a necessidade de se “repensar o regime das custas processuais”, já que em processos com coimas que “muitas vezes suplantam um milhão de euros”, o valor da taxa de justiça para iniciar o processo é igual à de uma impugnação de um qualquer cidadão, por exemplo numa infração ao código da estrada (102 euros), podendo, no final, chegar a um máximo de 510 euros.

Por outro lado, defendeu a necessidade de “disciplinar o modo de apresentação das peças processuais”, por não fazer sentido a existência de impugnações com 300 ou mais páginas, “com conclusões extensíssimas, com repetição de argumentos à exaustão, desviando a atenção do tribunal e dos escassos recursos do mesmo daquilo que é verdadeiramente relevante”.

Subdimensionamento do Tribunal da Concorrência põe em risco capacidade de resposta, consideram juízas

O Tribunal da Concorrência, criado há 10 anos, na sequência do compromisso assumido pelo Estado português com a “troika”, está atualmente subdimensionado, pondo em risco a sua capacidade de resposta, consideram ainda as juízas titulares do TCRS.

As três juízas são unânimes na avaliação positiva da criação de uma resposta especializada para temas complexos, mas advertem para as implicações de constrangimentos que se têm vindo a agudizar, como a difícil gestão das salas de audiência disponíveis, a falta de assessorias especializadas e a limitação dos recursos humanos — tanto de magistrados como de funcionários judiciais.

As expectativas para os próximos anos não são positivas, considerando-se que o Tribunal padece de problemas estruturais que irão agudizar-se, com reflexos inevitáveis na pendência dos processos”, o que deve merecer reflexão “por quem de direito”, declarou Vanda Miguel..

Também Marta Borges Campos, titular do J2 e, das três, a que há mais tempo permanece no TCRS, considera que as perspetivas para os próximos anos “não são positivas, se o subdimensionamento revelado pelo Tribunal, a nível de equipamentos e recursos humanos, não for solucionado da forma mais adequada, pois estará a funcionar em condições anómalas e desvantajosas e assente, sobretudo, no esforço individual dos magistrados e funcionários”.

O esforço individual tem limites, sobretudo se funcionar em condições desvantajosas. Por isso, esse subdimensionamento pode comprometer a capacidade de resposta do Tribunal. O que para mim é motivo de grande tristeza”, sublinhou.

Mariana Gomes Machado, titular do J1, afirmou que, quando foi instalado, em 2012, o TCRS “tinha todas as condições”, pois estava praticamente sozinho no que foi designado como o Palácio da Justiça II, num edifício da antiga Escola Prática de Cavalaria (ex-EPC) que foi adaptado para o efeito.

A partir de 2014, com a “tomada do espaço” pelas jurisdições do Comércio, Trabalho, Cível, Execuções e Família e Menores, da Comarca de Santarém, esse passou a ser um constrangimento, tanto maior quanto o número de processos entrados tem vindo a aumentar, fruto do crescimento da atividade das entidades reguladoras, disse.

Como exemplo, apontou que, aos processos que estão atualmente pendentes, até ao final do ano são esperados mais 22 processos de nível 3 (com coimas acima dos 500.000 euros), só das entidades reguladoras que originam mais solicitações ao TCRS, ou seja, uma média de mais sete por cada juízo.

No caso do J1, além da sentença do que ficou conhecido como “cartel da banca”, que deverá proferir no final do mês, está agendado o início, para 4 de maio, do terceiro processo do Montepio, com prescrição em agosto próximo, tendo Mariana Machado sido “contemplada”, no final de março, com o recurso à coima de 2,8 milhões de euros aplicada pela CMVM ao ex-presidente do BES Ricardo Salgado e quatro antigos administradores, com infrações que prescrevem em 26 de novembro deste ano.

Temos pouco tempo de sala para o ritmo que é preciso imprimir a estes processos para uma resposta adequada”, disse, salientando que, com a distribuição do processo BES/CMVM, é preciso que seja “tomada uma decisão de gestão”, nomeadamente através de um reforço de quadros, sob o risco de algum deles prescrever.

Para Vanda Miguel, o facto de não haver uma sala de audiência em exclusivo para cada um dos juízos do TCRS “implica constrangimentos na realização das audiências de julgamento nos processos de especial complexidade em simultâneo”, sendo que apenas uma das salas permite a presença de mais do que quatro advogados.

Cada juíza passou, em março, a dispor de sala dois dias e meio por semana (antes eram dois), a que acresce a possibilidade de um terceiro dia (à sexta-feira).

“Esta insuficiência de salas de audiência implica que seja bastante difícil compatibilizar a necessidade de realização de julgamentos de forma o mais célere possível, com a agenda do tribunal e com a agenda dos senhores advogados, que legalmente têm de ser consideradas”, afirmou.

Vanda Miguel realçou que, desde que exerce funções no TCRS (setembro de 2019), em todos os julgamentos de elevada complexidade teve de recorrer a espaços exteriores, como o Instituto Politécnico de Santarém, o salão nobre do ex-Governo Civil ou o Tribunal do Cartaxo.

“Considero que este tipo de soluções, por ter passado a ser um recurso não esporádico, mas antes sistemático, afeta de forma negativa a imagem do Tribunal, não sendo facilmente compreensível pelos utilizadores da Justiça o facto de o Tribunal ter de sair constantemente da sua “própria casa””, frisou.

As juízas referiram as limitações que este tipo de solução coloca, desde a questão do transporte e guarda fora do tribunal de muitos volumes, anexos e apensos, da necessidade de assegurar as questões informáticas (como o acesso ao Citius e a realização de videoconferências), à ausência de salas para os magistrados e para os advogados, à deslocação dos funcionários.

No Palácio da Justiça II, além da limitação das salas de audiência, não existem gabinetes para todos os magistrados (o J2 e o J3 partilham o mesmo gabinete, tal como acontece com o juiz auxiliar neste momento ali a exercer funções, que partilha o gabinete com o juiz da Central Cível).

“Esta situação de subdimensionamento não parece ser transitória, atento o aumento da atividade sancionatória das autoridades administrativas de regulação e supervisão, com especial enfoco para a Autoridade da Concorrência, pelo que requer soluções que não sejam meramente transitórias, como as que têm vindo a ser adotadas”, acrescentou.

Para a juíza, impõe-se “assumir frontalmente a necessidade de criação de um local próprio para sediar o TCRS, que permita a existência de, pelo menos, uma sala de audiências por Juiz”.

A informação de que não foi feita qualquer dotação no Orçamento do Estado nem incluída no Plano de Recuperação e Resiliência (PRR) a concretização da anunciada “grande sala de audiências”, no designado futuro Palácio da Justiça III, também na antiga EPC, orçada, segundo o Ministério da Justiça, em 790 mil euros mais IVA, leva as juízas do TCRS a acreditar que “tal não irá suceder”.

Também Marta Campos lamentou a necessidade “reiterada de recorrer a espaços fora do Tribunal”, sobretudo a partir de finais de 2020, fruto da “entrada constante de recursos de contraordenações de especial complexidade, com vários intervenientes processuais e muitas sessões de julgamento”.

“Tudo indicia que essa necessidade se vá manter. O que torna o recurso a espaços fora do Tribunal não algo de pontual, episódico ou esporádico, mas uma constante. A alternativa seria dilatar muito o tempo de duração dos julgamentos, o que em processos muito próximos do fim do prazo de prescrição pode ter um impacto decisivo”, afirmou.

Para a juíza, ao não seguir “a lógica e o modelo regra implementado nos tribunais”, no sentido de as salas de julgamento, secção de processos e gabinetes dos magistrados estarem todos no mesmo edifício, o TCRS, “ao realizar julgamentos constantemente fora do edifício do Tribunal, estará a funcionar de uma forma anómala, com todas as desvantagens que isso implica”.

Questionado pela Lusa, o Ministério da Justiça (MJ) declarou que o edifício onde funciona o TCRS “detém condições adequadas”, dispondo de sete salas de audiências, tendo sido concluído, em março, o projeto elaborado pela Câmara Municipal de Santarém para a instalação de uma “sala de audiências de grandes dimensões”, que servirá a Comarca.

Contudo, não aponta qualquer data para a concretização do projeto.

“As salas de audiências existentes naquele edifício são partilhadas por todos estes tribunais, sendo a gestão da sua ocupação efetuada pelos órgãos de gestão da Comarca”, afirma o MJ.

“Sempre que necessário”, a gestão da Comarca tem “disponibilizado outros espaços para a realização de diligências judiciais”, dando o MJ os exemplos do Palácio da Justiça do Cartaxo e da sala de “grandes dimensões” no Centro Nacional de Exposições (utilizada em 2021 no julgamento do processo de Tancos e atualmente num outro julgamento), contratada igualmente pelo Instituto de Gestão Financeira e de Equipamentos da Justiça.