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Afrotravesti todo-o-terreno, um café em Rabo de Peixe e uma aula de jazz secreta: já se celebra o Tremor em São Miguel

Este artigo tem mais de 2 anos

A pé ou de bicicleta, num coliseu ou numa garagem antiga, o festival celebra uma vez mais a sua identidade polifónica. Estivemos entre Puta da Silva, Peter Evans e Trypas Corassão: um privilégio.

Puta Da Silva tomou conta do Cais da Corretora, transformou-o numa arena para corpos dançantes, que agradeceram a invasão
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Puta Da Silva tomou conta do Cais da Corretora, transformou-o numa arena para corpos dançantes, que agradeceram a invasão

Inês Subtil

Puta Da Silva tomou conta do Cais da Corretora, transformou-o numa arena para corpos dançantes, que agradeceram a invasão

Inês Subtil

Martin Khanja nunca tinha ouvido falar dos Açores, arquipélago aparecido por desígnio mágico no meio do Atlântico, tal como nós nunca tínhamos ouvido falar da cena metal de Nairobi. Para ele e para Sam Karugu, sua cara metade do projeto Duma, os Açores eram tão misteriosos quanto para nós a sua música. “É a nossa primeira vez em Portugal e calhou ser logo aqui, nesta ilha” diz de sorriso aberto. Explicar-lhe-íamos que nada acontece por acaso no Tremor. Nove edições volvidas e o festival continua a ser um lugar de encontro e de intersecção de pontos que, não fosse o rasgo e quiçá uma certa insanidade curatorial, dificilmente se tocariam.

Ouvir Duma, que no dialeto kikuyu do Quénia significa “escuridão”, numa garagem bate-chapas com um palco no centro, estilo ringue de boxe amador, foi tudo o que precisámos para perceber que o Tremor já tinha começado. Teríamos vários dias pela frente para fazer cair qualquer preconceito e para nos deixarmos levar por aquilo que nos aparecesse à frente neste festival, que vive muito da força humana e natural de São Miguel.

Ainda antes de os rapazes de 29 anos do Quénia apresentarem o seu dark metal industrial, mesclado com techno digno de uma noite delirante no berlinense Berghain — eles, aliás, já lá tocaram — Tristany abria as hostes do Tremor no Coliseu Micaelense.

Ao vivo, acompanhado por uma banda com beats, guitarra, violino e percussões, o som intimista de Tristany ganhou uma nova dimensão. Na sua voz, as palavras dissolvem-se em longos vocalizos etéreos de amor e de dor. Ele, falando do álbum Meia Riba Kalxa (2020), lá o classificaria como um objeto que veio de um espaço preciso, a linha de Sintra, musa das suas histórias, um objeto capaz de se elevar no espaço. “Não vamos prender as coisas”, pedia-nos, deixando o corpo retorcer-se e expandir-se consoante a música assim o ditava. Tristany é isso, essa nudez emocional cortante que nos abraça num ritual comunitário extremamente sensível. O seu canto parece vir das profundezas da alma, como o canto das baleias vem das profundezas do mar.

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Ouvir Duma, que no dialeto kikuyu do Quénia significa "escuridão", numa garagem bate-chapas com um palco no centro, estilo ringue de boxe amador, foi tudo o que precisámos para perceber que o Tremor já tinha começado

Carlos Brum Melo

Andar de bicicleta e esbarrar em Puta da Silva

Vê-lo-íamos a passear por São Miguel nos dias seguintes. Afinal, é a sua primeira vez no Tremor e a vontade de acompanhar o festival até ao fim ancorou-o na ilha. Não é o único a fazê-lo. O Tremor tem este encanto de juntar artistas, público, locais e visitantes no mesmo espaço com total naturalidade. “Aqui não há áreas VIP”, dir-nos-ia alguém do staff durante o set de OMNE. Tudo flui ao sabor da música.

Este ano, além das já conhecidas caminhadas performativas, em parceria com o projeto Terra Incógnita, o festival lançou o Tremor Todo-o-Terreno e pôs-nos a pedalar por percursos sonorizados desenhados em Ponta Delgada. “É a primeira vez que estamos a fazer isto, até tenho medo”, soltou numa pequena risada Luís Banrezes, diretor do Tremor, na sua La Bamba, a loja de discos, sede da editora Marca Pistola, que por estes dias recebe as Incógnita Talks.

Não é razão para tanto, embora o receio de Luís não fosse de todo infundado: à primeira paragem de um pelotão de cerca de 20 ciclistas, junto à zona balnear de Forno da Cal, as colunas incorporadas nas bicicletas decidiram boicotar aquilo que deveria ter sido um momento de escuta coletiva sincronizado. Problemas com o bluetooth levaram a que algumas ganhassem vida própria e começassem a transmitir rádios locais. Por momentos os Coldplay invadiram o Tremor, mas resolvido o problema, as palavras de Puta da Silva tomaram conta do espaço.

Ninguém ficou indiferente a Puta da Silva e não foi fácil sair daquele lugar (Fotos: Vera Marmelo e Carlos Brum Melo)

Ela estaria à nossa espera uns quilómetros à frente, no Cais da Corretora e com o Ilhéu Rosto de Cão ao fundo, enformando um cenário poderoso, de mar bravio, para a sua também portentosa performance. “A mesma rua em que me jogaram foi a rua que me fez”, cantaria na sua luta afrotravesti, recentemente conceptualizada no álbum visual E.P.I Travesti (Equipamento de Proteçāo Individual Travesti) (2021).

Com ela tinha um bailarino, um DJ e um guitarrista, criando um diálogo entre funk, samba, hip hop, samples vários, entre música e performance. Todos quanto estavam à sua volta viraram facilmente suas testemunhas e seguidores: miúdos pequenos ao colo dos pais, senhoras espreitando da janela, com dúvida e curiosidade e mergulhadores que, uma vez vindos à tona, mostravam-se incrédulos com a transformação do Cais da Corretora, feito arena de corpos dançando como se fossem animais.

A escola de Peter Evans

Ninguém ficou indiferente a Puta da Silva e, como tal, não foi fácil sair daquele lugar, nem esquecer o som das sete facas que a tentaram matar à porta de um cabaret ou dos versos daquele samba triste e singelo:

“Mamãe quando eu morrer
Peço uma recordação
Os cachos dos seus cabelos, mamãe
Pra enfeitar meu caixão”

Descemos às catacumbas da dor, putos da vida, e das catacumbas renascemos, mais vivos do que nunca. Alguns ficaram por lá mais umas horas, até o sol se pôr, até as aves marinhas se aconchegarem no ilhéu, longe das garras dos seus predadores felinos. Outros rumaram a Rabo de Peixe para o primeiro Tremor na Estufa do festival.

O local secreto escolhido para a ocasião seria o Cine-Teatro Miramar, palco demasiado pequeno para todos os que gostariam de ter visto os alunos da Escola de Música de Rabo de Peixe a passear pelo jazz de John Coltrane e de Ornette Coleman, sob a orientação de Peter Evans (Fotos: Vera Marmelo)

O local secreto escolhido para a ocasião seria o Cine-Teatro Miramar, palco demasiado pequeno para todos os que gostariam de ter visto os alunos da Escola de Música de Rabo de Peixe a passear pelo jazz de John Coltrane e de Ornette Coleman, sob a orientação de Peter Evans. O trompetista e compositor norte-americano, que atuará no sábado, dia 9 de abril, ao lado destes mesmos alunos e de Rodrigo Amado, foi o convidado desta edição para o projeto de cocriação que habitualmente o Tremor promove junto desta escola, que já se tornou banda residente do festival. “Começamos com School Work, tema apropriado para a ocasião”, anunciaria Evans. Durante praticamente 45 minutos, a formação foi-nos dando improviso, linhas standard do jazz, momentos de brilhantismo de Evans que, contudo, soube-se retrair para dar palco aos jovens que ali eram as verdadeiras estrelas.

Fora do Cine-Teatro, amontoavam-se grupos de pessoas às portas dos cafés de Rabo de Peixe, ou no varandim debruçado sobre o mar, para beber um último fino antes do jantar. Anita, Paloma e Maria, três meninas que não deveriam ter mais de 10 anos, aproximaram-se de nós, continentais pasmados a olhar para um azul imenso, o carregado azul insular, atirando-nos perguntas destemidas, “Vocês são estrangeiros?”.

Não somos, embora os sotaques enganem e a distância física que nos separa seja de perder de vista. Naquele momento, porém, estávamos bem próximos. “Também queremos ir ao festival”, diziam-nos, sem se aperceberem de que o festival já estava nelas, de que naquele instante elas eram o próprio festival. O Tremor tem inúmeras formas de nos sussurrar ao ouvido e cada uma é tão tocante quanto a sua semelhante.

Trypas Corassão na boca do povo

O segundo dia ainda veria Ikram Bouloum a encher a sala elegante do Ateneu Comercial e os Baby’s Berserk, com o seu disco post-punk, a fazer a festa no Coliseu Micaelense, mas a noite foi das Trypas Corassão, duo composto pela atriz e performance Tita Maravilha e pela produtora e DJ Ágatha Barbosa, também conhecida como Cigarra. Para elas, diriam no final do concerto, o Tremor foi o show da vida e terá sido certamente inesquecível para muitos dos que estavam na plateia.

“Trypas Corassão já está na boca do povo” e o povo, uivando louco, saiu da Garagem Antiga Varela em apoteose

Carlos Brum Melo

“Nosso som é violento, mas é de verdade”. Vem da rua, fala de pobreza, pobreza que pega, como diria a vilã Bia Falcão da novela “Belíssima”, interpretada por Fernanda Montenegro. Vem do brega, “não deixa o brega morrer” cantaram como se de samba se tratasse, esse género maior que ficaria a ressoar nas colunas, já com o concerto terminado, pela voz de Francisco Alves, fracasso, fracasso, fracasso. Vem da “putaria”, desafiando convenções, diluindo fronteiras de género, de estilos, de expressão, convocando o Brasil marginal (Elza lembrada lá no meio com o grito “pra foder, pra foder”) e as divas e as bestas, todo o submundo que não se resigna a calar e que tem a sua história, as suas subjetividades para contar.

“Trypas Corassão já está na boca do povo” e o povo, uivando louco, saiu da Garagem Antiga Varela – o mesmo ringue que recebera na noite anterior os Duma – em apoteose. O Tremor ainda tem muitas atuações pela frente, mas esta não vai desgrudar com facilidade.

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