“Isto é um alinhar dos shakras da nossa normalidade.” Ana, Maria, Rebeca e Sofia, todas da área da medicina, estão ao pé da zona das bebidas, de purpurinas ao alto. São cinco da tarde e o entusiasmo já lhes tomou conta do corpo. O “isto” é o festival Sónar, no Pavilhão Carlos Lopes, em Lisboa. A par do Centro de Congressos de Lisboa e do Coliseu dos Recreios, tem sido este o epicentro da música eletrónica nos últimos dias. Neste sábado, com The Blaze DJ, IAMDDB, Nicolas Cruz ou Honey Dijon. Tudo só ali, num edifício que já foi a casa mãe do desporto na cidade e que, desta vez, é veículo de destaque para a primeira vez do evento em Portugal (depois de quase 30 anos em Barcelona, onde continua).
Há música, há tecnologia, mas também há glamour, cor, sexualidade e estilo. Uma performance para inglês ver — inglês, espanhol, brasileiro, fazem todos parte da mancha humana deste evento. Há óculos de sol vintage, daqueles milimétricos, casacos à maneira de John Lennon, personagens do Matrix, roupas saídas da “Outra Face da Lua”, sotaque Jersey Shore, gente nova, gente velha, gente com filhos. E freiras. Um grupo de espanhóis, vestidos religiosamente (ora nem mais) a rigor para uma despedida de solteiro, vá. É tudo muito bonito mas, questões importantes: porquê ouvir música eletrónica ao vivo a meio da tarde de um sábado?
É simples. Afinal, após dois anos de pandemia, há que regressar à normalidade. Aquela em que nada disto soa a evento exótico ou extraordinário. Continuar a ir ao parque, mas em vez de livros leva-se vontade de dançar, traz-se suor e fantasia, como cantava quem sabe. Todo esse processo é feito agora com mais estilo, para o Instagram, porque se der para abanar a cabeça com bons sons e ganhar mais uns seguidores, ainda melhor.
“Encontrei o amor da minha vida no Sónar”. Estamos de volta à companhia do grupo de médicas, todas com idades na casa dos 30 anos. Esta é Rebeca, enamorada por um italiano que vive em Inglaterra. Ela e as amigas são de Lisboa, Coimbra e Viseu. Gostam de música eletrónica, frequentam eventos do género, como o Neopop, mas é a primeira vez que metem os pés na marca catalã. Vieram de propósito à capital para estar aqui. Acima de qualquer artista, a vontade de dançar manda mais, um grupo de amizades que veio “para uma catarse”, que as livre por uns minutos do peso da profissão — e de tudo o resto, vá.
Nessa liberdade momentânea, que pode ser gozada no pavilhão Carlos Lopes quer dentro do recinto ou fora, porque música eletrónica é quando e onde a dança quiser, há, porém, obstáculos. Se quiser, episódios inesperados. Não houve, durante um tempo, café. Ou, para um festival que quer promover (e bem) a sustentabilidade, dar ao público um copo de plástico, um único é certo, pode também ser controverso.
Detalhes à parte, basta abrir o alinhamento para perceber que o Sónar quer aproveitar o facto de ter selo internacional para catapultar o talento português. Do novo ao mais velho. E ele viu-se em palco, com Ana Pacheco, que lançou o dia, com pouca gente, talvez a recuperar do dia anterior. Com Discos Extendes Trio, Diogo, Terzi, Smuggla e Lieben, que só usam vinil e que aqueceram o início de tarde, meio chuvoso.
Paula, professora de português de São Paulo, que trouxe o amigo Edward ao Sónar, vive em Portugal há ano e meio. “O tempo é sempre bom, ao contrário de hoje, a cidade de Lisboa tem o tamanho certo, e está cada vez mais internacional”, diz o amigo. Parece um slogan de uma campanha qualquer do Turismo de Portugal, mas não é. É de Edward, que este sábado estava na cidade a ouvir música eletrónica, mas é capaz de ir ver os Rolling Stones a Madrid. Eclético, está-se bem, o que interessa é ir andando. Ora, para não parecer disco riscado, o melhor é ler o conselho de um inglês, que veio “ver e sentir” a versão portuguesa deste encontro entre música, tecnologia e criatividade. “Ainda bem que começaram a falar com as pessoas a esta hora”, contou ao Observador.
A esta hora, entre as 16h00 e as 18h00, já tinham pisado aqueles palcos, além dos nomes referidos, IAMDDB ou Nicola Cruz. Angola, África do Sul, energia laranja e espiritualidade, é preciso expurgar os demónios. E claro, The Blaze. Entre estes três concertos, com tanto pulsar lá dentro, a sala de espectáculos do Pavilhão Carlos Lopes foi enchendo e enchendo e enchendo. E essa enchente, de olhos fechados, copo na mão, movimentando o corpo como se não houvesse amanhã — e o gesto é igual, qualquer que seja a nacionalidade, e por mais tempo que esteja parado por causa da pandemia de Covid-19 — foi embalando os artistas.
Embalando quem atuava e quem, à primeira vista, podia não figurar neste ambiente. Um grupo de três amigos, com uma relação que vai daqui até França, são puros amantes daquilo que se ouve no Sónar. Mais velhos, com o rosto de quem já percorreu muito recinto, com a cor de cabelo que podia chutar para a reforma, só que não. O que os move “é a vibração”. “Gostamos de todo o tipo de música, tem tudo a ver com a vibração”, conta Marciana. Poucas palavras, não vá o tempo fugir, servem para deixar uma recomendação à primeira edição do Sónar em Lisboa: falta oferta para celíacos. As filas para a comida e para a bebida, contrariam o número de pessoas com esta doença auto-imune, mas numa altura de maior consciência ambiental, social, económica e de saúde — e já que o Sónar quer bem receber quem vier por bem, de qualquer parte e de todas as partes — fica a recomendação.
Os “shakras da normalidade” podem não estar completamente alinhados ainda no Sónar, até porque a esta altura faltava mais uma noite, madrugada e um domingo inteiro pela frente (este domingo, ide ver e comprovai). Mas uma coisa é certa: o festival vai voltar. O fluxo internacional presente comprova essa vontade. Lisboa está na cena e daí não quer sair. Com mais ou menos energia. Com mais ou menos obstáculos. E com mais ou menos purpurina.