Alejandro Zambra nasceu em 1975 e tem sabido criar espaço na literatura chilena coetânea. Traduzido para mais de 20 línguas, já conta com três edições em Portugal: Bonsai (Edições Teorema, 2007), Maneiras de voltar para casa (Divina Comédia, 2014) e Poeta Chileno (Elsinore, 2022). Este último, que aqui tratamos, impressionou o público e a crítica especializada, tendo vencido o prémio Mejores Obras Literarias 2021, na categoria de romance. O prémio foi atribuído pelo Ministério das Culturas, das Artes e do Património do Chile.

Nota-se, na prosa de Zambra, uma tendência clara para não perder tempo com o que é inútil e incapaz de operar na narrativa. Em Bonsai, tínhamos isto ao máximo: a prosa foi limada, liberta de palha, tratada para ir ao osso. Em Poeta Chileno, voltamos a ver o mesmo apreço pelo que é funcional. Em todos os capítulos, temos acção que compõe as personagens, o que deixa o leitor em cena com elas.

No romance, Gonzalo encontra Carla, a sua namorada da adolescência, nove anos depois de se terem despedido. Agora mãe de Vicente, Carla reinicia uma relação com o antigo namorado, que de início se sente desconfortável com a existência do rapaz. Aos poucos, forma-se a família, e Gonzalo assume o papel de pai. Quando refere a possibilidade de ter um filho, tanto diz “o meu próprio filho” como “outro filho”. E, ainda que a relação entre os dois pareça filial, percebe-se que não há volta a dar à realidade. Quando o casal se separa, impõe-se também a separação entre eles. Gonzalo sente-se chutado para canto, impedido de aceder aos seus direitos:

 – O teu filho é parecido comigo. Foi graças a mim que pudeste estudar. Tudo o que tens é graças a mim.

Repetiu 20 vezes esse estribilho, a transbordar de ressentimento: sentia que Carla o queria destruir pontapeá-lo no chão, matá-lo.”

O teu filho parece-se comigo, eu criei-to. Não me podes afastar assim sem mais nem menos. Não me podes apagar. Eu tenho direitos.

A última frase era ridícula e talvez por isso tenha ficado no ar uns segundos, talvez um minuto inteiro, como quando uma piada parte em duas uma conversa. Só que não era uma piada.”

(p. 160)

E, não sendo uma piada, não havendo direitos de facto, impõe-se a separação dos três. Gonzalo ruma a Nova Iorque e, ao longe, Vicente vai crescendo com as marcas que o primeiro deixou. Afinal, também ele deseja ser poeta. Quando Gonzalo volta ao Chile, reencontra-se com o antigo enteado, numa altura em que já a narrativa se voltou para a produção poética contemporânea do Chile. Vicente vai discutindo os poetas aqui e ali com Pru, uma jornalista que entretanto conhece, e depois com Gonzalo.

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Livro: Poeta chileno
Autor: Alejandro Zambra
Tradução: Miguel Filipe Mochila
Editora: Elsinore
Páginas: 384

Em Poeta Chileno, temos, assim, uma discussão despretensiosa sobre a poesia do Chile, mas os aspectos de maior peso são outros. Ao criar uma família nestes moldes, Zambra pôde lançar luz sobre as famílias recompostas e então fragmentadas outra vez. Ao assumir o papel de pai, Gonzalo não pôs freios na sua capacidade de amar Vicente. Mas, rompida a relação amorosa, tornou-se claro que só a mãe tinha direito ou legitimidade de estar com a criança. Um parte, a outra fica, e é na cabeça de quem parte que a confusão se instala. Durante muito tempo, Gonzalo não saberá sequer como responder quando alguém lhe pergunta se tem filhos e demorará anos até o fazer sem o parêntesis que explica a história de Vicente.

Todo o romance está marcado por laivos de humor, que não raras vezes aparecem entrelaçados de cinismo. Da prosa de Zambra, pode dizer-se que é audaciosa e desempoeirada. Nunca se apanha o pé na poça, se o pé for a prosa e a prosa um formalismo desadequado. Estando a prosa seca, o autor nunca empola, e por isso o que dá é o que tem. O leitor lê e recebe a história, e os diálogos vivos e frequentes dão às personagens as rédeas da narrativa.

Tratando assuntos delicados – a expectativa de uma relação que dura, um filho que não precisa de ser filho, um elo que se quebra –, Zambra deixa que o leitor veja o retrato panorâmico, adentrando-se na vida de duas gerações, e tratando sem dramas do lugar impreciso em que fica o afecto que não tem para onde ir. Quando Gonzalo e Vicente se reencontram e o leitor vê atarem-se uns fios da corda que os unia, há uma sensação agridoce. Por um lado, nem tudo foi perdido. Por outro, não se recupera o que já houve. E, mais uma vez, pela eficácia da estratégia do autor chileno, que consiste em dar a ver, o leitor deixa-se estar com as personagens, e como elas tem vontade de fazer durar.

Com múltiplos talentos, Alejandro Zambra tem feito um percurso importante na literatura chilena. Este será o seu romance mais voltado para a literatura – e é, no meio disto, isento de literatice. É difícil que um autor possa pegar num assunto como a poesia contemporânea, dando-lhe palco e discussão num romance, sem ser pretensioso, pseudo-intelectual ou gabarolas, mas Zambra fê-lo por só ter querido osso. Assim, não espanta que vá crescendo na produção literária sul-americana.