Se o chamado Golpe das Caldas, ocorrido a 16 de Março de 1974, tivesse tido sucesso, estaríamos agora a comemorar essa data em vez do 25 de Abril. Mas esse levantamento militar falhou e ficou para a história como a grande mola que, pouco mais de um mês depois, lançou o movimento do 25 de Abril, já que os militares do MFA viram a prisão de uma série de oficiais nele envolvidos como a última gota para o derrube do regime. A este propósito, o capitão Salgueiro Maia (que não saiu nesse dia) diria mais tarde: “À falta de melhor motivo e no mínimo dos casos a acção seria desencadeada para libertar esses homens.”

Apesar da sua importância, o Golpe das Caldas não é referido em “Salgueiro Maia — O Implicado”, de Sérgio Graciano. É uma das raras omissões deste filme que quer dar a conhecer a vida e a intimidade do homem por trás do símbolo do 25 de Abril, carregando de informação as quase duas horas que dura (haverá também uma série de televisão). O capitão Salgueiro Maia teve um papel fundamental no golpe militar, ao ocupar o Terreiro do Paço com as suas forças de Cavalaria, conseguir a rendição dos homens fiéis ao regime comandados pelo brigadeiro Reis (não falta o célebre episódio da pistola que encravou) e depois receber a capitulação de Marcello Caetano no Quartel do Carmo.

[Veja o “trailer” de “Salgueiro Maia — O Implicado”:]

Após esta implicação até ao tutano no 25 de Abril, Salgueiro Maia distinguiu-se pela prudência noutra data fundamental da revolução, o 25 de Novembro, e pela reticência a partir daí. Ao contrário de muitos dos seus camaradas, não se envolveu na vida política nem em aventureirismos delirantes “à la Otelo”, nunca se meteu com partidos e recusou sempre os cargos para que o queriam nomear, o que acabou por indispor a hierarquia contra ele. Militar de casca e gema, desprendido das tentações da vida pública e das vaidades mediática, ele transformou-se (ou foi transformado) numa símbolo politicamente consensual, supra-partidário e supra-ideológico, do 25 de Abril – uma espécie de incarnação dos seus ideais mais “puros”.

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Escrito por João Lacerda de Matos com base num livro de António Sousa Duarte, e com Tomás Alves a desempenhar convincentemente o papel principal (Salgueiro Maia foi já antes interpretado por Manuel Wiborg em “A Hora da Liberdade” e pelo italiano Stefano Accorsi em “Capitães de Abril”), “Salgueiro Maia — O Implicado” dramatiza a carreira e sobretudo a vida privada do capitão de Abril, ambas bastante documentadas em livros, artigos de jornal e pela televisão. Vemos a recruta agitada, o casamento, as comissões em África, o militar de vocação e patriota que se desilude gradualmente do regime e se vai envolver no MFA; e o amigo, o camarada de armas, o marido e pai de família, a recusa de cargos e benesses no pós-revolução, os choques com a hierarquia militar, a luta contra a doença e a morte, apenas com 47 anos.

[Veja imagens do filme:]

O filme sofre com a sua falta de meios (vê-se perfeitamente que as — atabalhoadas — sequências da guerra no Ultramar foram filmadas em Portugal, e as do dia 25 de Abril são visualmente muito “fechadas”) e a vontade de detalhar os factos da vida e traçar o retrato humano e psicológico de Salgueiro Maia faz com que os acontecimentos históricos em que esteve envolvido sejam ou reduzidos a uma vulgata de lugares-comuns (sobretudo antes do 25 de Abril), ou tão radicalmente resumidos (depois do 25 de Abril) que escaparão a quem não estiver minimamente familiarizado com eles; e pelo outro, que o dito retrato saia mais em traços largos e condensado, do que cheio e pormenorizado.

Em vez de fluência e articulação no contar, temos uma sucessão de episódios rápidos e esquemáticos, um desfile de cenas ilustrativas (o diálogo com um caricatural Spínola no 11 de Março), demonstrativas (a discussão com Vasco Lourenço para figurar os choques com os superiores e a aversão à oferta de cargos) ou elípticas (a questão do alegado filho ilegítimo nos Açores), passadas nos quartéis ou na intimidade de Salgueiro Maia, do seu círculo de amigos e dos familiares, na maioria débeis em dramatismo.  “Salgueiro Maia — O Implicado” é diligente mas esquemático, um filme biográfico muito telegrafado sobre uma dos raras figuras emblemáticas do 25 de Abril em que o tempo e a História não deixaram manchas ou mossas.