Valeu a Anne Weber o Prémio do Livro Alemão, e não era para menos. Logo nas primeiras linhas, o livro surpreende, não por recuperar o género da epopeia, mas pela forma como o texto aparece depurado. Tudo é incisivo, tudo vai ao osso. Não há uma linha do texto que não seja marcada pela elegância formal da autora.

O livro lê-se num embalo, o texto sabe a fresco, e a história de Anne Beaumanoir é tão densa que se lê ao jeito de aventura. Foi essa história que Anne Weber contou nesta epopeia biográfica. Beaumanoir, nascida em 1923, foi membro da Resistência comunista francesa e salvou dois adolescentes judeus dos ocupantes nazis. Foi médica e foi condenada a uma pena de dez anos de prisão por envolvimento no movimento de luta pela independência da Argélia. Morreu a 4 de Março de 2022, deixando para trás a história de uma heroína que o foi não por perseguir actos heróicos mas porque pôs a coragem sempre avante.

Ao longo do livro que aqui temos, vemos que o movimento de resistência não aparece como dogma. Muitas vezes, é preciso sacrificar, e muitas vezes questiona-se o sacrifício. Muitas vezes não se sabe sequer para onde se vai.


Título: Annette, epopeia de uma heroína
Autora: Anna Weber
Tradução: Helena Topa
Editora: D. Quixote
Páginas: 176

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Na vida de Beaumanoir, temos a história franco-alemã, não como contexto ou panorama, mas como veículo interno da narrativa, formando-a ao invés de a possibilitar. Vemo-lo em pequenos exemplos, em que vida e contexto se fundem, e o rasgo eficaz da autora não passa ao lado: “Os pais não sabem nada/ da crise económica mundial, têm a/ Grande Depressão em casa.” (p. 13). O que começa em gestos suaves vai ganhando corpo ao longo do livro, que, ao adentrar-se no movimento da resistência a partir da personagem, deixa sempre patentes as sub-camadas e a complexidade da existência, principalmente nos momentos em que se afasta de tudo o que é pacífico. Se, por um lado, temos a militância comprometida num movimento, por outro, temos a força de quem não aceita dogmas, e aqui o amor aparece como garante de humanidade indestrutível:

(…) Se for preso, não
pode trair ninguém, nem sob tortura. Os
amantes estão a infringir claramente os ditames
do partido, mas pouco se preocupam com isso,
tanto mais que há coisas, como toda a gente sabe, que nem
um partido nem ninguém nem lei nenhuma podem impedir.
É claro que os “quadros” do partido não podem saber de nada,
mas como haveriam de saber?” (p. 32)

Pelo meio, pesa ainda o olhar dos outros sobre Annette. Sendo mulher, tinha sempre mais a provar – o dobro do valor para meio reconhecimento. Depois do primeiro casamento, casa de novo, e o que a atrai ali é a possibilidade de ir para a Indochina. Para Annette, “é um combate diferente e é o mesmo,/ lá ocupam e oprimem, e desta vez em nome da França,/ portanto em seu nome” (p. 75).

Ao ver-se, mais adiante, separada dos filhos perante a sua prisão, cogita finalmente o valor da revolução: “Será que valeu a pena? Fiz bem em/ fazer o que fiz? Não? Sim?” (p. 108). É aqui que o livro explora a questão do sacrifício de forma magistral. Há ainda que registar que Anne Weber não dá respostas, simplesmente vai desfiando – com mão segura, levemente – uma vida que se compôs de acção e que se pautou pela vontade – necessidade até – de mexer no mundo.

É sempre difícil traçar um país a partir de uma vida, principalmente se não se quiser cair num registo panfletário ou escusadamente épico, empolando e dando mais do que o que havia. Mas, ao querer imiscuir-se permanentemente na história, Annete Beaumanoir não deixou que esta corresse à margem. Anne Weber apanhou tudo com mão de cirurgiã.