No centro do Brasil, entre o mato e o desterro, ergue-se uma capital concebida ao detalhe geométrico, uma utopia de nome Brasília, de há dois anos para cá, entregue ao governo democrático mais conservador que há memória. Contenham-se de grandes exercícios de história, não é necessário ir mais longe que esta semana, durante outro discurso de Jair Bolsonaro a descrever o Brasil como “um país cristão, nós somos contra o aborto, nós somos contra a ideologia de género, nós defendemos a família, nós defendemos a propriedade privada, nós queremos armas de fogo para o cidadão de bem”.

E nesta mesma semana, a cantora Pabllo Vittar tornou-se na primeira artista drag queen a subir ao palco mais coqueluche da pop, o Festival Coachella, na Califórnia. Ao mesmo tempo, no salão de festas que é a televisão brasileira, a população mobilizou-se em volta de outra cantora, Linn da Quebrada, concorrente da última edição do Big Brother Brasil, uma mulher trans que colocou o país fervorosamente a discutir pronomes e identidade de género. E no Lollapalooza de São Paulo, o principal evento de massas da música alternativa em solo brasileiro, outra artista trans, Jup do Bairro, cantou sobre um corpo transitório numa sociedade estanque. E isto no mesmo país de Brasília, de corpos estanques e cargos transitórios. Que país é esse?

“Eu acredito que o futuro e o passado andam de lado a lado”, reflete Jup do Bairro, diante dos contrastes evidentes que formam o Brasil de hoje. “Enquanto a gente está avançando — a reivindicar os nossos direitos, os nossos espaços — as pessoas com privilégios sentem-se ameaçadas, por isso, ao mesmo tempo, existem pessoas agora a pedir pela ditadura. É como se o avanço e retrocesso andassem lado a lado nessa disputa”. O embate entre os extremos é a génese de uma nova cultura brasileira, a tal omelete que não surge sem quebrar um quantos ovos. Na vanguarda deste novo Brasil está CORPO SEM JUÍZO, o EP travesso de Jup de Bairro que se recusa a obedecer a qualquer ordem de género, identitário ou musical, do funk mais marginal ao rock’n’roll. A estreia em Portugal é este sábado, no Pérola Negra, Porto; e domingo no Musicbox, Lisboa.

© Isac Oliveira

O EP CORPO SEM JUÍZO é a jornada da heroína transgressora, outrora um rapaz constrangido da periferia. “Fui crescendo e entendendo a missão/ Sem pai, tive que cuidar de mãe e irmão”, narra em “O CORRE”, canção de hip hop de fusão, bateria furtiva com hi hat irrequieto, a relembrar os primeiros anos de sobrevivência em Capão Redondo, região sul de São Paulo. “Muita gente da periferia, das favelas, o primeiro contacto com a arte é a igreja”, justifica a cantora do verso seguinte: “Era bixinha e era crente, cê entende?”. “Mas também foi na igreja que comecei a perceber esse lugar de não pertencimento, antes de eu me descobrir, as pessoas apontavam e deduziam quem eu era. Eu nao sai do armário, eu fui tirada do armário”. Ou como versa em “O CORRE”: “O que não me matou, me deixou mais forte”.

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Em Capão Redondo, mergulha na cena punk e anarquista da periferia, as fanzines DIY distribuídas pelas ruas. “Eu me apaixonei pelas fanzines, mas tinha muita vergonha, achava muito presunçoso imaginar meu texto numa dessas revistinhas”. Em casa, durante a adolescência encoberta, desenhava os primeiros poemas de CORPO SEM JUÍZO. “Mas eu não tinha pretensão que aquilo podiam ser poesia, a arte apareceu para mim como uma espécie de terapia barata, onde eu começava a escrever o que estava passando na minha cabeça, o que estava acontecendo com o meu corpo.” Um amigo convence a publicar as poesias numa fanzine, e naquele recato católico, de risca ao meio, começa a distribuir revistas que fariam corar as gentes de Sodoma e Gomorra. “Aquilo causava um impacto nas pessoas, como se ficassem constrangidas. E com o tempo comecei a ser instigada a fazer esses embates que criava com as pessoas.”

“A Jup tem uma história interessante, pois grande parte da relação dela com as artes se dá de forma autodidata. Em diferentes momentos ela acaba atuando como educadora, palestrante, styling, atriz, cantora, performer, produtora de eventos e apresentadora. Ela vem tanto de um espaço de conexão com o teatro e com a performance, quanto com um universo do punk e do hip-hop”, contextualiza Renan Guerra, jornalista e crítico de música de São Paulo. “É importante ressaltar uma particularidade de São Paulo: a periferia fica à margem da cidade, distante do centro, por isso a gente pode falar em movimentos que acontecem no centro da cidade e movimentos periféricos e isso tem uma representação geográfica.” Jup do Bairro emerge na periferia, inicialmente na produção de eventos em Capão Redondo, até arriscar subir ao palco e improvisar declamações. “Fui percebendo que faltavam outros corpos, e a importância de me expor para ver esses outros corpos estranhos contemplados em palco”. A poeta e performer dá o corpo às balas, e após um vídeo viral – com a Jup a declamar entre bases de batida, quase rap — recebe convites para espaços que julgava estarem inacessíveis a “corpos estranhos” da periferia: o centro de São Paulo.

“São Paulo estava muito carente de corpos pretos, que fossem para além da teoria. Conversava-se muito sobre a teoria queer, a manifestação dos corpos pretos na arte, mas não havia a prática”, recorda a artista, que subitamente torna-se uma habitué na cena underground paulista, a declamar em galpões e bares sombrios, entre o funk e o techno. “É importante adicionar que nos anos 2010, o Brasil passou por um movimento de troca e conexão entre pessoas negras e LGBTQIA+ que foi chamado por alguns de ‘Geração Tombamento’, explica Renan Guerra, a relembrar nomes que já passaram por palcos portugueses como Johnny Hooker, Karol Conká, e Liniker Barros & Os Caramelows. Em 2017, Jup estaria diretamente envolvida numa das obras marcantes do movimento, um clássico da música brasileira deste século: Pajubá de Linn da Quebrada. O álbum altamente provocador, recheado de rimas e vídeos passíveis de escandalizar os mais púdicos, introduziu à maioria dos brasileiros à abordagem performativa da Linn da Quebrada, com a mesma dose de galhofa e ativismo, num vale-tudo de sensibilidades eletrónicas.

© Isac Oliveira

As parcerias com Linn da Quebrada, desde Pajubá ao programa “TransMissão” — este último, um talk show apresentado pelas duas amigas no Canal Brasil — amarraram inegavelmente a imagem da cantora de Capão Redondo à colega bem-sucedida neste meio termo entre a marginalidade e o mainstream. “Mas no final de contas, cada uma de nós só pode representar nós mesmas”, pondera a cantora, que em 2019 decide desenlaçar uma carreira em nome próprio, através de uma campanha  pública de angariação de fundos para editar um EP. “Eu conseguiria com muito dificuldade lançar um álbum, mas precisava de acreditar em pessoas, e sentir que essas pessoas acreditavam em mim.” Os crentes obedecem e atingem a meta de 40 mil reais, Jup entra finalmente em estúdio com a produtora e DJ Badsista; e agora sim senhora, estava tudo no ponto, que coisa linda – isto se esquecermos o diabo à espreita, um cornudo conhecido como Covid-19. “Eu confesso que tive medo”, revela sobre o lançamento de CORPO SEM JUÍZO, o resultado de anos de morosa autodescoberta e composição, em cheio na pandemia, em 2020, durante um governo que inicialmente não dava o braço a torcer à mais elementar ciência. “Mas a população em geral sentiu um medo que o meu corpo já vivia, que é sair de casa e poder morrer. Essa sensação apocalíptica popularizou-se, mas corpos como o meu já passaram pelo apocalipse há muito tempo.”

“No sufoco criado da minha própria mudança/ Uma mucosa com vazio e falsas esperanças”, segue em “TRANSGRESSÃO”, a primeira canção de CORPO SEM JUÍZO, norteado pela voz grave, mais frágil que provocatória, de Jup do Bairro. “No aperto do casulo da minha própria criação/ Pensando em morte inevitável, me preparo pra morrer na solidão”. O diálogo com o corpo é solitário, um incerto estágio de casulo que aguarda a libertação – “O peso some, o corpo para, dispara/ Me deparo voando com um par de asas”. “Acho poético quem consegue separar a pessoa jurídica da pessoa física, mas é uma dificuldade muito grande para mim”, confessa deste roteiro autobiográfico. “Acho que dentro deste reconhecimento de quem sou, eu literalmente me perdi no personagem, e acredito fielmente que a Jup do Bairro inventou a Jup Lourenco Mata Pires. Utilizei as ferramentas da arte como uma desculpa para me entender”.

Os concertos de apresentação em Portugal vão contar com a participação vital de Badsista, a responsável por interpretar os vocalizes e conceitos de Jup, que não domina qualquer instrumento, e transformá-los em melodias. “ALL YOU NEED IS LOVE” é um funk mal-arranjado, e ao mesmo tempo, exibe uma sensibilidade galante, das eletrónicas mais melódicas, na companhia de Linn e Rico Dalasam — outro nome fundamental a reter. É um banger de coração grande, e de líbido ainda maior: “A sua cama é box?/ Ela vai pular bem forte/ Você vai até achar que tá no show do Slipknot”. E Badsista ainda assume a responsabilidade de forjar alguma coesão nesta complexa oficina de sons e géneros que ocupam a cabeça tatuada de Jup. O exemplo paradigmático é “PELO AMOR DE DEIZE”, a colaboração com a ícone funk Deize Tigrona, nossa conhecida ao lado dos Buraka Som Sistema em “Aqui Pra Vocês”: um funk festeiro estava no forno, mas em cima da hora, porque não, afinal Jup desafia a funkeira mor a cantar um rock ameaçador à Rage Against the Machine sobre depressão – “Quantas vezes a solidão foi o seu lugar?” – e remata com um refrão hilariante – “Levanta dessa cama pelo amor de Deize”. Sejamos claros, Jub do Bairro não joga limpo consoante as regras, é um campeonato à parte.

“Eu não faço música LGBT, não é pela minha identidade de género ou sexualidade que eu componho músicas. Quando eu fizer um rock, quero estar nas playlists de rock”, reitera, alertando para a gula insaciável de uma indústria que, como cantaram os Taxi: prova, mastiga e deita fora. “O mercado quando vê capacidade de venda, tudo acaba por ser muito mais palatável. Mas é muito importante prestar a atenção quando colocam as nossas vivências como pautas, como uma tendência”. A arte de Jup do Bairro não é uma tendência, é a realidade na sua crueza desoladora, amorosa e burlesca. “Caminhei por ruínas e escombros/ Alguma guerra aconteceu aqui”, perfaz em “Sinfonia do Corpo”, o seu último single, e se acham que estamos a tratar somente de questões de género, que atire a primeira pedra quem nunca esteve em guerra consigo próprio. “Eu quero imaginar o inimaginável”, conclui a autora de CORPO SEM JUÍZO. “Apesar de eu trazer a minha história, as dores, a morte e vida, este corpo em movimento, mas não é música vampiresca, eu quero criar uma possibilidade de vida: olha o que eu construí através das minhas feridas”.