O Ministério Público optou por não centralizar as várias denúncias de alegados abusos sexuais de menores na Igreja Católica que lhe foram recentemente remetidas pela comissão independente que está a investigar o assunto, preferindo distribuir as denúncias pelas várias estruturas do MP para que sejam avaliadas as condições para a abertura de inquéritos judiciais relativamente a cada um dos casos.

A informação foi confirmada esta quarta-feira ao Observador pela Procuradoria-Geral da República, mais de duas semanas depois de a comissão independente liderada pelo pedopsiquiatra Pedro Strecht ter revelado publicamente que 16 dos 290 testemunhos que recebeu tinham sido remetidos ao Ministério Público por ainda terem condições para serem investigados pelas autoridades civis — uma vez que ainda não tinham ultrapassado o prazo de prescrição.

Durante uma semana e meia, até à última sexta-feira, e apesar dos contactos insistentes do Observador no sentido de saber o que estava a ser feito com as denúncias publicamente divulgadas, a Procuradoria-Geral da República manteve-se em silêncio, tal como explicou o Observador num artigo publicado na sexta-feira.

Abusos na Igreja. 290 testemunhos, 16 casos enviados ao MP e indícios de encobrimento. As primeiras conclusões da comissão independente

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Agora, a PGR vem confirmar que recebeu as denúncias e que as distribuiu pelas várias estruturas do Ministério Público.

“A Comissão Independente para o Estudo de Abusos Sexuais contra Crianças na Igreja Católica em Portugal remeteu ao Gabinete da Família, da Criança e do Jovem, da Procuradoria-Geral da República, dezasseis denúncias anónimas relativas a eventuais abusos sexuais de crianças por parte de membros da Igreja e de outras pessoas a ela ligadas”, diz a PGR numa nota enviada ao Observador. “As participações recebidas na Procuradoria-Geral da República foram remetidas às competentes estruturas do Ministério Público para apreciação e eventual instauração de inquérito.”

Uma das perguntas antes feitas pelo Observador prendia-se com a opção que seria tomada em relação à unificação ou não das denúncias. Na prática, se todas a queixas seriam entregues à mesma equipa de procuradores — eventualmente criada a propósito destas investigações, com o objetivo de seguir critérios únicos na análise dos casos já reportados e de todos os outros que possam seguir-se. De acordo com a explicação da PGR, as participações “foram remetidas às competentes estruturas do Ministério Público para apreciação e eventual instauração de inquérito”, o que significa que não foi tomada a opção de juntar todas as denúncias para serem analisadas pela mesma equipa de procuradores.

Uma decisão desse género não seria inédita. Em 2018, por exemplo, a então Procuradora-Geral da República, Joana Marques Vidal, determinou a criação de uma equipa especial de procuradores para investigar todos os crimes ligados ao mundo do futebol. A equipa foi criada em coordenação com a antiga procuradora Maria José Morgado, que mais de uma década antes já tinha ficado com a responsabilidade de agregar todos os inquéritos que estivessem relacionados com o célebre processo Apito Dourado.

Abusos na Igreja. Ministério Público em silêncio sobre 16 denúncias enviadas pela comissão independente

A decisão de agregar as denúncias numa única investigação coordenada por uma única equipa de investigadores poderia levar à criação de um mega-processo. Esses inquéritos de grande dimensão  têm desvantagens operacionais, motivo pelo qual o combate aos mega-processos tem sido uma das grandes prioridades no setor da justiça, mas também apresentam a vantagem de garantir que são seguidos os mesmos critérios e os mesmos calendários para todas as investigações em causa.

A dispersão territorial destes 16 casos de abuso (e de outros casos que venham, eventualmente, a ser remetidos pela comissão independente ao MP) poderá justificar a instauração de 16 inquéritos autónomos, conduzidos por procuradores diferentes e julgados por juízes diferentes — não sendo, por isso, de excluir o risco de casos semelhantes poderem vir a ter resultados diferentes e a ser resolvidos com maior ou menor rapidez.

Há duas semanas, a comissão independente que está a investigar os abusos sexuais de menores cometidos por membros da Igreja Católica ao longo das últimas décadas anunciou já ter recebido 290 testemunhos válidos nos primeiros três meses de investigação. Desses, 16 casos ainda não teriam ultrapassado o prazo de prescrição, pelo que ainda poderão ser sujeitos a uma investigação judicial pelas autoridades civis. Por esse motivo, foram enviados para o Ministério Público. A comissão também já encontrou indícios de encobrimento por parte da hierarquia da Igreja Católica, incluindo por bispos no ativo.

Em janeiro deste ano, numa conferência de imprensa no arranque dos trabalhos da comissão independente, o juiz conselheiro jubilado e ex-ministro da Justiça Álvaro Laborinho Lúcio, que integra o grupo de trabalho, explicou que a comissão tem uma linha de contacto direta com a PGR, através do gabinete da procuradora-geral da República e do Gabinete da Família, da Criança e do Jovem. Essa linha direta serve justamente o propósito de encaminhar diretamente para as instâncias civis os casos que forem identificados no decurso do trabalho da comissão e que ainda possam ser investigados pelo Ministério Público.

Mais recentemente, Laborinho Lúcio explicou que não é estranho que dos 290 casos identificados apenas 16 tenham sido remetidos para o Ministério Público. A “falta de datas exatas”, disse, contribui para que, em muitos casos, seja impossível perceber se um determinado crime pode ou não ser investigado pelas autoridades. Ainda assim, Laborinho Lúcio garantiu que existe uma “troca constante de informação” entre a comissão e as autoridades.

Concentrar denúncias “faria mais sentido”, diz advogado que defendeu vítimas da Casa Pia

Em declarações à Rádio Observador, o advogado António Pinto Pereira, que trabalhou no processo Casa Pia, considera que a decisão não faz sentido. Sustenta que “faria mais sentido o contrário”, ou seja, centralizar a informação na mesma equipa.

Na opinião de António Pinto Pereira, são vários os inconvenientes que poderão surgir por o Ministério Público ter escolhido não concentrar as 16 denúncias. Entre eles, contam-se a “multiplicação da mesma investigação criminal”, a “perda de tempo” e o facto de as decisões poderem ser variadas, o que para o advogado “é um fator de insegurança jurídica”.

“Se houver múltiplas decisões avaliadas por diferentes tribunais isso vai fazer com que haja necessariamente diversidade de decisões judiciais”, diz António Pinto Pereira.

Além disto, o advogado aponta também que “uma dispersão da investigação e uma pulverização de processos leva a que os tempos de investigação sejam diferentes”.

“As testemunhas vão andar a saltar de processo em processo quando eventualmente as mesmas testemunhas têm contacto com várias vítimas e conhecem vários factos que são relacionados com vários arguidos. Portanto a concentração da produção de prova nas várias fases do processo faria sentido. Os timings das decisões vão ser necessariamente diferentes. Eu julgo que por todas as razões devia haver uma concentração da investigação. Agora há 16 vítimas, mas o número pode ser diferente, estamos a falar de 290 testemunhos”, diz António Pinto Pereira.

Ainda assim, o advogado diz que se o objetivo é combater megaprocessos, a decisão do Ministério Público “é mais que legítima”. De qualquer forma, António Pinto Pereira considera que “num caso tão específico como este e tendo em conta o que está em causa, faria todo o sentido concentrar a investigação numa mesma equipa com um grau de especialização maior e eventualmente com uma maior eficácia. Mesmo sabendo que muitas vezes estes megaprocessos têm uma eficácia muito reduzida, com pouco sabor a justiça. Ainda assim eu teria feito a concentração numa equipa de magistrados”, diz o advogado. António Pinto Pereira lembra mesmo que “no passado e em situações equivalentes” a investigação foi concentrada.

Ouça aqui a entrevista à Rádio Observador na íntegra.

Abusos sexuais na igreja. Concentrar denúncias “faria mais sentido”