Este sábado, a Liga 3 tem a sua jornada decisiva a nível de subidas ao segundo escalão (profissional), algo que foi alcançado na última ronda pela Oliveirense. Das oito equipas nesta fase, com mais ou menos história no futebol português, sete chegam a este patamar com legítimas aspirações de festejarem ou pelo menos irem ao playoff de apuramento do último clube a ascender à Segunda Liga. Só pela competitividade desportiva, já era uma aposta ganha. Ainda assim, trouxe outras coisas. Mais jovens jogadores, mais talentos revelados, mais treinadores a encontrarem uma rampa de lançamento, mais espectadores. Tantos que, no último fim de semana, só dois jogos em Portugal tiveram mais público do que o U. Leiria-Oliveirense: o Benfica-Famalicão e o Sp. Braga-FC Porto. 13.204 pessoas estiveram no Municipal que quando os leirienses ainda andavam na Primeira Liga só mesmo em encontros com “grandes” se podia aproximar dos números que tem hoje.

Muitas vezes, no futebol ou em qualquer outra área da sociedade, as grandes transformações começam de forma inevitável em pequenos casos. A Liga 3 é um exemplo paradigmático disso mesmo, um novo espaço competitivo colocado com vários objetivos entre os escalões profissionais e o Campeonato de Portugal. O regresso das equipas B outra. A nível feminino, a criação de mais e melhor competição. No futsal, a limitação do número de jogadores não formados localmente. Mas para onde caminha o futebol? E para onde quer ir? Estas foram algumas perguntas discutidas durante largos meses pela Federação Portuguesa de Futebol com várias entidades dos demais quadrantes ligados de forma direta ou indireta ao fenómeno desportivo que, no final, resultou no documento agora conhecido: “Portugal 2030, plano estratégico para a década”.

No fundo, e até perante a ausência de qualquer atividade desportiva no Plano de Recuperação e Resiliência, a Federação ouviu todas as partes para criar o “seu” PRR no sentido de manter toda a evolução da década anterior com um retrocesso durante a pandemia que a vários níveis já voltou ao patamar onde se encontrava. E com uma ambição pública conhecida: mostrar ao mundo esse percurso através da organização do Mundial de 2030 com a Espanha, uma decisão que será conhecida entretanto em ano de centenário da competição.

O presidente da Federação Portuguesa de Futebol, Fernando Gomes, durante uma conferência de imprensa de anúncio do fim de carreira de Ricardinho ( ausente na foto) pela seleção nacional bde futsal, na Cidade do Futebol, em Oeiras, 09 de novembro 2021. Depois de ter conquistado o título mais desejado da carreira, graças à vitória de Portugal sobre a Argentina (2-1), na final do Mundial2021, na Lituânia, o ala, de 36 anos, encerrou um trajeto de quase duas décadas na seleção com 187 jogos, 141 golos e dois grandes troféus. RODRIGO ANTUNES/LUSA

Direção liderada por Fernando Gomes foi ouvindo vários intervenientes de diversos quadrantes até consolidar documento aprovado pela Federação

Qual é o ponto de partida de Portugal? Uma radiografia ao passado e presente

Portugal surge como um dos países mais bem sucedidos não só no futebol, a nível de clubes e seleções, mas também no futsal (com uma Seleção A bicampeã europeia e campeã mundial em título) e no futebol de praia. Olhando agora apenas para o futebol, existem quatro pontos que funcionam como base de partida.

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  • Performance elevada das seleções nacionais masculinas e uma das melhores ligas profissionais masculinas a nível europeu (6ª, atrás de Inglaterra, Espanha, Itália, Alemanha e França);
  • Formação reconhecida mundialmente com um elevado número de jogadores profissionais e treinadores nas principais ligas europeias (todos os convocados da Seleção atuam nesses seis países predominantes);
  • Um dos países da Europa com a maior percentagem da população a registar interesse por futebol (74%);
  • Elevada maturidade da estrutura federativa, reconhecida no mundo e dotada de capacidade de organização de grandes eventos a nível mundial (mais recentemente, com duas finais da Champions).
The UEFA Champions League trophy prior the final soccer match between Chelsea and Manchester City to be held at Dragão Stadium Porto, Portugal, 29 May 2021. HUGO DELGADO/LUSA

Portugal organizou as duas últimas finais da Liga dos Campeões, na Luz em 2020 (Bayern-PSG) e no Dragão no ano passado (Chelsea-City)

Olhando para outros números mais no plano interno, pode perceber-se também a evolução que existiu nas duas últimas décadas e que até mesmo a nível de jogadores federados voltou ao que era antes da pandemia à exceção do futsal, em alguns casos com a explicação tão simples como a falta de equipamentos tendo em conta os pavilhões que foram transformados em Centros de Vacinação sobretudo a partir de 2021.

  • O número de seleções só femininas cresceu 50% de 2000 para 2012 (4-6) e mais 100% até 2022 (6-12), havendo nesta altura no total mais do dobro do número de seleções que existiam há 20 anos (12-27);
  • O número de competições organizadas pela Federação mais do que duplicou desde 2000, passando de 18 para 48 (em 2023 terá já 52), assim como o número de jogos que são organizados por temporada, que foram dos 4.600 para os 6.800 até 2012 e de 6.800 para 9.600 de 2012 até este ano, preparando-se para passar a fasquia dos 10.000 encontros a partir da próxima temporada;
  • O número total de títulos internacionais obtidos pelas seleções deram um salto de quase 100% até 2012 (8-15) e cresceram na última década mais 100%, passando de 15 para 30;
  • O número de jogadores federados era de 92.137 em 2000, subindo para 154.517 em 2012 e para quase 200.000 este ano (195.366); o futebol feminino foi aquele que mais evoluiu na última década, com um aumento de 100% a nível das jogadoras federadas (6.136-12.161); o futsal quase triplicou o número de jogadores de 2000 para 21012 e aumentou agora mais 5.000 na última década; o grande salto a nível de jogadores jovens no futebol foi também entre 2000 e 2012, de 56.602 para mais do dobro (121.314).

Como será o mundo em 2030 e como se pode acompanhar essas mudanças?

Do ponto de partida para a casa de chegada no plano traçado para a próxima década, o trabalho faz também uma reflexão sobre como se poderá perspetivar o mundo daqui a dez anos e que ferramentas podem ser encontradas para enquadrar o caminho de crescimento perante a nova realidade que estará criada, entre as (muitas) incertezas adensadas num passado recente por uma pandemia mundial e uma guerra na Europa.

  • Haverá uma nova geração consolidada que será 100% digital e terá novos padrões de consumo;
  • Estarão mais consolidadas as macro cidades, num processo também agilizado pelos desafios que vieram com a pandemia e que estão relacionados também com possibilidades como o teletrabalho;
  • O mundo terá novos mercados de consumo em especial na Ásia, como exemplos em países como a Indonésia, o Paquistão, o Bangladesh e as Filipinas (todos eles com milhões de fãs de futebol);
  • Existirá uma consolidação maior dos movimentos crescentes de causas sociais e ambientais;
  • Aparecerá uma tendencial generalização do digital, até pelo 5G ou pela Inteligência Artificial.

Mercado asiático vai continuar a crescer noutros países que não os atuais. Na imagem, uma estátua de Ronaldo em Goa, na Índia

Ou seja, e perante esta realidade, há alguns dados inevitáveis no futuro. Alguns exemplos: a tecnologia vai continuar a crescer e a mudar a forma como se pratica, prepara e vê futebol e as mulheres continuarão a ter um peso crescente no jogo, a nível de praticantes ou consumidoras. Assim, há cinco grandes tópicos de adequação a essa viragem no futebol em comparação com o que era em 2012 e do que será em 2030.

  • A experiência do futebol irá sofrer uma transformação grande tendo como principal mola a tecnologia na forma como se treina, como se joga e como se assiste a um treino ou a um jogo;
  • A participação das mulheres no futebol vai continuar o seu processo de crescimento exponencial, sendo que nesta altura apenas 6% do número total federados são mulheres;
  • O crescimento dos e-sports irá continuar, sendo que o facto de não ser propriamente o jogo jogado pode na mesma servir como dínamo para potenciar outro tipo de interesse no futebol;
  • A atual fórmula de receitas vai mudar, até por forma a acompanhar as mudanças crescentes que têm vindo a ser feitas enquadradas com a maneira como se “consome” hoje ao futebol, sendo que existirão também novas fontes seja a nível de países emergentes, seja a nível de novas plataformas;
  • Continuará a haver uma grande incerteza em relação ao futuro depois de dois anos marcados por uma pandemia e por um guerra na Europa, sendo por isso necessário criar planos alternativos a isso.

Quais são as alternativas para melhorar e os objetivos a atingir até 2030?

Tendo em conta este cenário, onde fica balizada a atual realidade e também o contexto que será encontrado no ponto de chegada do projeto, o plano gizado pela Federação aponta para um futebol que seja capaz de se relacionar com todos numa perspetiva de oferta desportiva, educacional e social para todas as idades; um futebol que continue a ser um veículo de promoção no mundo; um futebol que promova a igualdade e a integridade sendo também um exemplo de sustentabilidade; e um futebol que continua a fomentar o seu cariz formador não só de jogadores e treinadores mas também de outros agentes e também árbitros. Para isso, há quatro ideias fortes para servirem de catalisador para todos esses objetivos a atingir até 2030.

  • Debelar a falta de infraestruturas para a prática do futebol, romper com o estigma do futebol feminino ainda enraizado no futebol feminino, reforçar um desporto universitário que tem há muito falhas e melhorar comportamentos, incluindo dos próprios pais, para trazer assim mais fãs e praticantes;
  • Melhorar o desempenho e os resultados de todas as equipas no plano internacional, aumentar aquela que é a atual capacidade de atração do futebol feminino e colocar o produto futebol português com um destaque e uma imagem que não restrinja a capacidade de chegar a novos consumidores;
  • Evoluir o atual tecido nos clubes a nível de estrutura e dirigentes, ainda pouco sedimentado e sem o patamar necessário para lidar com as receitas atuais e com a tentativa de captar novas fontes;
  • Encontrar forma de colocar o futebol como um dos principais pontos naquele que é o share time de qualquer pessoa ao longo do dia tendo em conta a crescente oferta que chega de vários quadrantes.
A jogadora do Sporting, Fátima Pinto (E), disputa a bola com, Cloé Lacasse, do Benfica, durante o jogo da Liga Feminina de futebol, disputado no Estádio José de Alvalade, em Lisboa, 22 de maio de 2021. ANTÓNIO COTRIM/LUSA

Dérbi entre Sporting e Benfica é o único capaz de ter audiências de 115.000 no feminino. Objetivo passa por chegar a esse número em todos os jogos

É dentro destas ambições que são traçadas metas concretas até 2030 a vários níveis, não só em relação ao patamar das seleções nos rankings mundiais mas também do próprio jogo em si e das audiências televisivas.

  • Chegar aos 400.000 federados entre futebol e futsal (o dobro do valor atual), com 325.000 homens e 75.000 mulheres, um número ao nível daquele que existe nos países do norte da Europa, e aos 500.000 jogadores de futebol e futsal informais registados, que joguem por exemplo entre amigos;
  • No futebol, manter a Liga portuguesa masculina entre as seis melhores da Europa e a Seleção em quinto lugar do ranking mundial e tentar dar o salto com a Liga portuguesa feminina para o top 6 europeu fazendo entrar a Seleção nos 20 primeiros do ranking mundial; no futsal, objetivos semelhantes para masculino e feminino: ter a melhor Liga europeias e ocupar um dos três primeiros lugares do ranking;
  • Aumentar o tempo útil de jogo para um valor acima dos 60%, ter uma taxa média de ocupação dos estádios que seja superior a 50%, chegar a uma audiência média na Liga feminina de 115.000 espectadores (valor que nesta fase é apenas alcançado jogos entre Benfica e Sporting), subir em 13% do Social Return on Investment (impacto do futebol d formação na economia local), tornar as contas dos clubes positivas e passar a ter uma qualificação de 100% a nível de dirigentes.
Portugal v Russia: Final - UEFA Futsal Euro 2022

Portugal sagrou-se bicampeão europeu e campeão mundial de futsal, naquele que é o melhor período da história (acompanhado pelos clubes)

O que fazer para chegar a esse patamar no futebol em 2030?

Os objetivos são ambiciosos, encontram-se balizados e surgem ao abrigo de um total de 15 programas de transformação e evolução que permitam criar condições para que essas ideias se tornem realidade, sempre à luz de cinco grandes pilares estratégicos que norteiam tudo o resto: 1) a introdução do futebol desde cedo no pré-escolar que permita que qualquer criança tenha contacto com a prática; 2) a possibilidade para que todos possam chegar o futebol, de variadas formas e com qualquer idade; 3) o desenvolvimento da qualidade do jogo e de todos os seus intervenientes diretos e indiretos; 4) a maior ligação com quem consome futebol através do desenvolvimento da tecnologia; 5) a criação de um ecossistema que seja sustentável.

  • até 2024: conclusão dos compromissos previstos; lançamento de App; introdução de novo regulamento para fazer crescer o futebol feminino; adaptação do currículo escolar em escolas piloto; fornecimento de material complementar e infraestruturas a escolas, clubes e municípios; programa ATL do Futebol.
  • Até 2027: instalação e recolha de dados das câmaras de vídeo em campos de formação (uma ideia que tanto se aplica ao registo dos treinos por imagens, que acontece cada vez mais hoje a nível não federado, como aos coletes GPS que chegam a cada vez mais jogadores jovens); renovação dos formatos de transmissão de jogo; subida do tempo médio de jogo dos principais escalões; conclusão do projeto de construção urbana de grande infraestrutura para silos de campo de futebol; lançamento de novas competições regionais; aumento da ligação entre os clubes da terra e os adeptos locais.
  • até 2030: disponibilização de centro de serviços para apoio aos clubes a nível de financiamento, relação com adeptos e demais operações; criação de um centro de excelência para inovação, saúde e formação de treinadores; medidas de sustentabilidade ligadas à receção do Mundial de 2030.