Uma rapariga simples e honesta, pudica, trabalhadora, algo fria, até, apaixona-se. Azar dos Távoras, o rapaz, com quem a jovem Katharina passa apenas uma noite, é procurado pela polícia. As autoridades, na esperança de encontrarem o meliante, ou de perceberem se Katharina é afinal cúmplice do seu tão recente namorado, conduzem um longo interrogatório até zonas bem privadas da vida da decorosa rapariga.

O pior, porém, está para vir. O caso interessa a um jornal sensacionalista que vasculhará com pouco amor à verdade a vida de Katharina e das suas relações.

É a partir deste enredo que Heinrich Boll desenha uma reflexão sobre o papel da imprensa, das suas relações com a política, da impiedade dos seus juízos apressados e do modo como estes podem arruinar vidas comuns.

A tese de Boll parece contaminada por um discurso político algo despropositado. As mentiras do jornal sensacionalista, a deturpação viciada até das declarações que se podiam ajustar às suas narrativas, o modo como os jornalistas atormentam familiares  em sofrimento sem perturbação, como se já estivesse anestesiados da maldade do que fazem, vem acompanhado de uma ligação destes jornais à “direita”: Katharina e os seus patrões são acusados pelo jornal de serem comunistas, “vermelhos”, esquerdistas, como se a manipulação da verdade e o gosto por espezinhar os mais fracos fossem monopólio da direita.

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Uma boa fatia de leitores perceberá, obviamente, a ilegitimidade desta associação; no entanto, aquilo que está na base dela é uma conceção do jornalismo que terá uma aceitação muito mais universal. O “mau jornalismo” que Boll denuncia – e que gerará a violência que alimenta o seu próprio negócio – surge pela contaminação capitalista dos nobres princípios da imprensa. Os jornais deviam, numa sociedade democrática, funcionar como contra-poder. Não é função do jornal farejar pequenos delitos que opõem o povo ao povo; o foco do jornal deve apontar para o poder e para as suas manigâncias. O “jornal” de Boll deixa de fora do caso de Katharina o envolvimento de um industrial poderoso, numa espécie de símbolo da inversão completa do papel da imprensa: o poderoso, aquele que deve ser investigado, consegue dirigir o jornal através do seu poder e da sua influência; a pobre rapariga anónima e inocente, por outro lado, é agredida em todas as esferas da sua vida.

Boll vai, assim, mais longe na sua reflexão sobre o papel da imprensa do que aquilo que estamos habituados a ver. Não se trata apenas do repúdio pelas “verdades torcidas”, pelos títulos grandíloquos ou pelo vampírico gosto pelo sangue; todo isso pode ser relatado com maior ou menor mestria, mas já teria vários aprendizes a tentar os mesmos esboços; a reflexão de Boll vai mais longe – e é, também por isso, mais controversa – porque opina sobre o próprio objeto do jornalismo. A sua imprensa é filha da luta de classes, e a justiça impõe-lhe que se ponha do lado do povo contra o poder.


Título: A honra perdida de Katharina Blum
Autor: Heinrich Boll
Tradução: Paulo Rêgo
Editora: Cavalo-de-ferro
Páginas: 128

Esta ideia tem, no entanto, dois problemas que nos parecem claros. Em primeiro lugar, a ideia de que a justiça depende do objecto visado é particularmente difícil de aceitar. Vemo-lo a propósito das polémicas historiográficas de inspiração marxista que resultaram em conclusões de sentido inverso: a tentativa de transformar a história numa relação das forças de base, dispensando a narrativa do poder, centrada na macropolítica, mostra como o objecto pode ser permeável a leituras diferentes. Do mesmo modo que o jornalismo com foco na política poderia ser um instrumento da luta de classes ou uma forma de escrutinar o poder, também poderia legitimá-lo, mostrando que, independentemente dos crimes ou tropelias cometidos, seria no poder que estaria a força vital de uma sociedade, de que esta seria, na verdade, dependente do poder e não o poder das forças sociais.

Ao mesmo tempo, a ideia de que o jornalismo é um contrapoder democrático esbarra também nas suas condições de possibilidade. O que Boll mostra é precisamente a dificuldade das relações entre o jornalismo e a democracia. Isto é, mesmo um jornal probo e informativo, que procurasse apenas a verdade e na sua própria medida, nunca poderia manter-se apenas como contrapoder. O facto de o jornal influenciar a opinião, num modo de governo que depende do voto – isto é, da opinião – transforma sempre o jornal num foco de poder, num poder em si mesmo. Aquilo que Boll descreve é, assim, um beco sem saída. Se acreditarmos na sua ideia de poder, um poder que é corrupto, contra o qual se deve lutar, então qualquer jornal será sempre uma forma de corrupção. Aquilo que aparece como uma apologia das nobres intenções da imprensa, baluarte da verdade e do espírito-livre, transforma-se rapidamente no seu limite. Encarar a imprensa como contrapoder é assinar a garantia da sua falência e uma receita certa para o seu repúdio.

O livro de Boll e a sua crítica à imprensa escoram-se num pressuposto que não nos parece hoje tão seguro quanto parecia no tempo de Boll. A ideia de que a imprensa mobiliza a opinião, que é capaz de transformar os juízos de tal modo que se torna ela mesma uma potência transformadora da sociedade – para o bem ou para o mal – encontrará com certeza hoje mais céticos do que há cinquenta anos. Daí que o livro de Boll, embora catalogue uma série de reações humanas à calúnia e à exposição do maior interesse, passe por cima de um fenómeno que é hoje especialmente curioso: de onde vem a clara resistência, que se vê em todos os campos, à informação? A partir do livro de Boll poderíamos pensar que a descoberta de uma mentira leva ao descrédito do perpetrador dessa mentira; no entanto, não é esse o fenómeno a que assistimos. Aquilo que é especialmente interessante é a impermeabilidade da opinião aos novos dados e a extraordinária resistência dos pontos de vista àquilo que os possa desmentir.

Ou seja, aquilo que o estudo do espaço público e das suas relações com a informação sugere é a dificuldade que existe em determinar os alicerces de um ponto de vista. Temos uma opinião fundadora que determina todas as outras, de tal modo que estas só ruem se ruir a pedra angular? Funcionam as opiniões em rede, de tal modo que é preciso contestar uma série delas até que um ponto de vista possa mudar? A dificuldade em perceber este problema torna a própria ideia de opinião pública ou de discussão quase inúteis do ponto de vista prático. É claro que o objetivo da informação e da discussão, de um ponto de vista político, passa pela formação de consensos ou pela tentativa de convencer os outros daquilo que nos parece certo; no entanto, se não sabemos de que modo é que se convence não podemos deixar de lado a hipótese de toda a organização da imprensa e da opinião estarem desafinadas e serem inúteis para a vida social dos Homens.

Para Boll, um dos problemas maiores suscitados pelo caso de Katharina passa pelo modo como a imprensa pode, em vez de contê-la e de a denunciar, gerar violência. Katharina, uma rapariga comum, decide matar o jornalista que a teve debaixo de fogo, depois de ver a sua honra tão aviltada. O jornalismo transformou, assim, uma inocente numa criminosa. Não deixa de ser estranho, no entanto, que um dos mecanismos de mentira identificados por Boll a respeito do jornal – a variação de intensidade daquilo que se diz, o exagero, que não corresponde em tudo a uma mentira mas que não deixa de enganar – não agudize o carácter problemático do seu enredo. Isto é, a indisfarçável simpatia de Boll por Katharina deixa de lado a diferença entre aquilo que é feito pelo jornal e o ato de Katharina.

Aquilo que nos aparece como uma retaliação, como uma consequência da devassa da vida da jovem, denuncia o materialismo do autor, que não encontra diferenças entre os “crimes intelectuais”, mesmo que horrorosos, do jornal e o tiro que Katharina dispara. Esta identificação não é problemática apenas do ponto de vista legal; é, além do mais, problemática do ponto de vista literário, porque impede o autor de explorar aquilo que seria mais interessante na reação humana: é particularmente espantoso o modo como a mentira consegue afetar uma cabeça que tem consciência dela, mostrando assim a importância que o olhar dos outros pode ter sobre nós, a ponto de podermos deixar de nos importar até mesmo com esse olhar que motivou as nossas ações.

É, também, espantosa a necessidade de transformar uma ação intelectual numa ação física, de matar os que nos injuriaram, bater – como faz o advogado de Katharina – nos responsáveis pelas manchas na nossa reputação. A redução de todas as ações ao mesmo plano impede de perceber o alcance desse mesmo plano. A revelação da impotência vem quando a expressão física se torna o último reduto da personagem aviltada. Não porque, em última análise, é tudo matéria, mas precisamente porque não é tudo matéria. O corpo sente quando o espírito é aniquilado e sente o espírito como aquilo que de mais precioso tem. É isso que o faz reagir.