“Eu habito as perguntas, as cisões, as cesuras, as fusões impensáveis, as metamorfoses, as brechas, o que não conheço”

É esta espécie de manifesto por um novo Humano, um novo corpo, uma nova política, uma nova forma de olhar e ver a arte que se ergue a trilogia “Bestiário PINK” da bailarina, coreógrafa, performer brasileira Josefa Pereira, um nome a reter por todos aqueles para quem a arte não é um mero objeto de consumo, mas um mundo exigente, que pede disponibilidade para mudar a forma e o lugar do ver e do sentir, que pede atenção às subtilezas, às sombras, ao que ainda não tem nome, ao que talvez nunca possa ser racionalmente pensado, conhecido, decifrado.

A trilogia, integralmente criada em Portugal é concluída com a peça “Calor”, na noite desta sexta-feira, 6 de maio, no Teatro do Bairro Alto, em Lisboa. Durante o fim-de-semana a três peças que compõem o Bestiário; “Hidebehind”, “Glimpse” e “Calor” podem ser vistas ou revistas integralmente, num espetáculo com cerca de três horas.

Hidebehind é o monstro que habita as florestas escuras sem nunca ser visto, é o passado que nos fantasmagoriza. Fotografia João Abreu

“Cada peça é uma busca, não é uma história, ainda que elas falem de muitas histórias. Da minha própria, da minha ancestralidade, do meu passado, do que está em mim e eu não conheço. Sei que neste trabalho estou sempre tocando em sombras, em coisas que ainda não sei mas que sinto que estão lá. Acho que poderia dizer como Clarice Lispector disse do seu conto ‘O Ovo e a Galinha’: ‘eu mesma não me entendo’. Ela tinha essa coisa que também me interessa explorar de uma linguagem que me permita abismar-me em mim mesma”, explica a artista em conversa  com o Observador, no belíssimo foyer do TBA (antigo Teatro da Cornucópia) uma obra do artista plástico José Capela.

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Desde 2017 a viver em Portugal, “porque as múltiplas violências que se vivem no Brasil o tornaram um lugar opressivo” e, com a realização de uma formação no Forum Dança e um mestrado, em Amesterdão, pelo meio têm feito com que seja aqui que Josefa se esteja a afirmar como autora, como criadora de um universo performático que faz da procura, da experimentação e da investigação as suas traves mestras, “penso cada um dos meus trabalhos como uma fita de moebius onde não há principio nem fim”.

Nascida na Baía, cresceu em São Paulo, numa família de poucos recursos financeiros e, foi graças a uma bolsa de estudo, conseguiu estudar Artes do Corpo na UNICAM, uma universidade privada e cara, depois de anos de uma relação de amor-ódio com a dança que praticou desde criança. Fundou e trabalhou em vários projetos coletivos, quer como bailarina, quer como performer e todo o seu percurso tem um forte cunho político embora não panfletário. É uma obra onde o corpo é a matéria prima onde se alojam fantasmagorias várias: feminismos, questões de género, classe social, a normatividade imposta por uma cultura patriarcal e um regime de pensamento racionalista.

O corpo, esse lugar tão desprezado desde o platonismo, que o considerava desprezível face à grandeza da alma, essa coisa que, no século XIX, o filosofo alemão Friderich Nietszche disse não ser outra coisa são “o outro nome do corpo”, este habitado por pulsões várias, aberto a todo o tipo de ligações, disponível para todo o tipo de fusões, encontros, criação de mundos é também o que foi escravizado, torturado, disciplinado para existir segundo uma determinada norma, responder e aceitar formas de poder várias, religiosas, sexuais, classistas. Como escreve Bragança de Miranda no ensaio O Corpo e a Imagem, toda a nossa civilização é construida a partir da violência sobre o corpo. Por isso hoje “trata-se ainda de decifrar os motivos que originaram essa repressão” até porque neste século XXI novas violências se afiguram: a financeira, a medica, a tecnológica, as novas formas de exploração laboral. E se há lugar onde tudo isto pode ser pensado é na e a através da arte.

Por isso, quando Josefa Pereira, em “Hidebehind”, pinta o corpo nu de cor-de-rosa porque essa é uma cor polémica, histórica e política, porque é a cor que definiu um certo lugar de pensar o que é feminino, mas também se tornou ostracizada pelos movimentos feministas, aí temos a certeza que estamos perante uma artista que resiste à preguiça mental que é o “politicamente correto”, logo agarra facilmente um certo público. “Quando decidi pintar o corpo de rosa percebi que havia muitas resistências, por toda a carga simbólica que esta cor carrega. Essa polémica interessou-me, porque só gera polémica o que não está resolvido, o que inquieta. Nesse processo descobri que na Europa não havia pigmentos rosa até à exploração do pau-brasil, que o tornou um pigmento comum e barato na Europa. Ora é disto que eu quero falar na peça: o que se esconde atrás de mim, no meu passado? Ou sou eu que me escondo nele. Ele é mesmo passado ou afinal é futuro porque nunca está resolvido e está sempre a regressar como um fantasma?”

O que é monstruoso é fecundo; um manifesto sobre o valor da diferença

“‘Bestiário PINK’ é uma trilogia, jornada, arquipélago, ou nó, composta por três atos para um corpo anatomicamente dissecado em diferentes eixos. Através de ‘Hidebehind’ (frente x costas),
‘Glimpse’ (esquerda x direita), e Calor (cima x baixo), esta obra ficciona situações que propõem vislumbres à perceção, questionando polaridades: como vida/morte, norte/sul, humana/monstro (ou o outro), e conhecida/desconhecida podem ser dobradas, torcidas e invertidas de modo a pôr em vertigem cisões dicotómicas que definem a maneira como percebemos e agimos no mundo”, escreveu Josefa Pereira sobre este seu trabalho.

Glimpse, de 2021, é talvez a mais sombria e carregada das três obras mas também a mais sofisticada. Fotografia (c) BahaGorkemYalim

Quando começou a criar a primeira peça da trilogia “Hidebehind”, o que lhe interessava não era a monstruosidade no sentido da deformação física ou mental, mas sim procurar responder à pergunta: “em que lugares é que eu sou o monstro? Quando sou mulher? Latina? Hetero ou homossexual? Emigrante? Pobre? Artista? Quando estou nua?”

Sabemos desde a mitologia grega que o que define o monstro é o olhar. Foi porque Acteon viu a deusa Diana nua e ela, deusa da caça, sentiu que aquele era um olhar predador que o transformou em veado destinado a ser caçado e morto pelos seus próprios cães. Portanto, o que define a monstruosidade é sempre o olhar. É esse o grande desafio que Josefa Pereira injeta neste trabalho e que é transversal às três peças: é um olhar que se deixa fascinar pela diferença, pela estranheza e a partir dessa inquietação é capaz de aprofundar o seu pensamento, escavar a superfície dura de uma linguagem verbal, artística, política limitada, estreitada pelas várias formas de poder e encontrar novos caminhos, subtilezas, novas lógicas de pensamento. Ou, pelo contrário, é um olhar que quer ver apenas o que já conhece, que não quer sair da sua zona de conforto?

Josefa Pereira em “Hidebehind”: “Quero encontrar no corpo aquilo que eu não entendo” (Fotografia: Micaela Wernicke)

“O monstro tem um grande poder generativo, gerador de novas perguntas, novas palavras, novos conhecimentos”, afirma a artista que, na peça Calor, criou uma espécie de monstro ou de bicho, ou de prótese. “É uma coisa sem nome, onde cada um verá o que lhe for possível ver”. Confrontada com o alto grau de exigência da sua obra, Josefa reconhece a sua sorte em ter um lugar como o Teatro do Bairro Alto para a mostrar, não só como peças unas, mas também no seu conjunto, abrindo-lhe para isso as duas salas do edifício . “Não sei se vou voltar a conseguir mostrar este trabalho assim, mas fica o convite para os que forem capazes de escapar à lógica do que é racional”, conclui a criadora.

O espetáculo Calor estreia-se esta sexta-feira, 6 de maio, pelas 19h30 e tem a duração de cerca de 40 minutos. Cada peça tem o preço de 7 euros. No sábado e no domingo (dias 7 e 8) pode ver-se a trilogia nos seguintes horários: 16h30 “Hidebehind”/ 18h “Glimpse”/19h30 “Calor”. O “Passe Bestiário PINK” tem o preço de 18 euros