A aposta parecia perdida à partida. Se contar uma história verídica através da ficção já tem grandes probabilidades de correr mal (porque ficam de fora detalhes importantes, porque os atores não conseguem captar a essência das pessoas que estão a representar, etc), pegar em acontecimentos reais que foram dissecados numa série documental parece um caminho rápido para o desastre. O que é que uma minissérie pode trazer de novo que o documentário não tenha já mostrado?

As dúvidas eram legítimas antes da estreia de “The Staircase” — cujos três primeiros episódios estão na HBO Max, com cada um dos restantes cinco disponibilizados semanalmente a partir de agora — mas depois, olhando para a ficha técnica, estava lá o nome Antonio Campos (guionista de “The Sinner”) e o interesse começou a aumentar. Colin Firth e Toni Collette nos papéis principais garantiram o impulso que faltava para, ao menos, darmos uma hipótese à nova produção. O veredito é mais simples do que aquele que saiu deste caso: “The Staircase” é para ver, tendo ou não assistido ao documentário que está noutro streaming, a Netflix.

O primeiro episódio começa em 2017, para logo a seguir recuar até à noite, em dezembro de 2001, que mudou tudo na vida da família Peterson. Ao telefone com o 112, um marido muito transtornado pede ajuda: a mulher acabara de cair nas escadas e mal respirava. O marido era Michael Peterson (Colin Firth), um escritor relativamente conhecido em Durham, Carolina do Norte (EUA); a mulher era Kathleen (Toni Collette). O que parece um acidente trágico rapidamente ganha contornos de thriller, com Michael acusado de homicídio em primeiro grau e a família dividida quanto à decisão de o apoiar ou não. O que se segue parece demasiado estapafúrdio para ser verdade — por isso, ainda bem que existe uma série documental para nos lembrar de todos os detalhes sinistros desta história.

[o trailer de “The Staircase”:]

Vou tentar desviar-me dos spoilers como se estivesse num campo de minas, mas há coisas que têm de ser explicadas, caso desse lado haja dúvida se fazem ou não parte da liberdade artística de Antonio Campos e da sua equipa. Michael Peterson é uma figura profundamente contraditória: tem uma vida social ativa mas de vez em quando não parece ter grandes aptidões sociais; não se cansa de elogiar a mulher mas tem uma vida dupla; passa do viúvo desesperado e em choque para uma figura inanimada e despida de empatia em poucos segundos. A investigação em torno do homicídio revela que era bissexual, aspeto que ele jura que Kathleen conhecia. Além disso, no passado, outra figura importante na sua vida teve uma morte estranhamente semelhante e igualmente arrepiante.

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É verdade que não há nada melhor do que ver o documentário de Jean-Xavier de Lestrade, que recebeu o Prémio Peabody em 2004, e que teve mais episódios com atualizações até à estreia na Netflx, em 2018, para ir acreditando em tudo o que estamos a ver. Se fosse apenas ficção, seria daqueles projetos arrumados numa prateleira por ter tão pouco de potencial credível. No entanto, Colin Firth faz um trabalho exemplar ao interpretar este homem que tem sempre ali qualquer coisa que não bate certo. Toni Collette está presente através dos flashbacks da narrativa, que recua até semanas ou meses antes da morte de Kathleen e avança até ao julgamento, e, embora com menos tempo para brilhar, é uma personagem sólida cheia de dicotomias (financeiramente independente, com uma carreira e vida aparentemente perfeitas, partilha de forma sufocante com o espectador os momentos em que parece tudo demasiado intenso para ela gerir).

Os muitos filhos do casal — uns do lado de Michael Peterson, outra do anterior casamento de Kathleen — são liderados por duas figuras que se destacam, Todd (Patrick Schwarzenegger) e Martha (Odessa Young). É que o que parece escrito na pedra e os une a todos no início da tragédia — a certeza de que o pai nunca mataria a mãe — depressa se vai desvanecer, com partidos tomados por uns que nem querem ouvir as provas e outros que, perante teorias, resultados da autópsia e muita especulação na imprensa, começam a ponderar o pior cenário de todos. A atiçar o fogo está Candace (Rosemarie DeWitt) — este trocadilho podia estar relacionado com um determinado presente de Natal mas até foi por acaso —, uma das irmãs de Kathleen, cuja raiva pelo cunhado gela toda a gente à volta.

Porém, o trunfo de “The Staircase” está numa personagem que passa agora a ser parte da narrativa. Jean-Xavier de Lestrade, o autor da série documental, é incluído nesta ficção e serve para mostrar os dois lados de uma história que ganhou logo uma dimensão ficcional assim que as câmaras começaram a filmar (é que, apesar de estar a produzir um documentário, Lestrade quis puxar pelo lado mais apelativo, a versão mais inacreditável de uma história já sinistra por si só).

No fim de contas, decidir se acreditamos na inocência ou não de Michael Peterson é pouco relevante aqui — deixamos essa análise para os episódios da Netflix — mas decidir se faz ou não sentido alguém que está em pleno julgamento de homicídio, com a família esfrangalhada, aceitar ser o tema de uma produção para televisão já nos compete. Antonio Campos acertou em tudo aquilo a que se propôs — menos no nome. “The Staircase” remete-nos imediatamente para uma história que já conhecemos, e talvez seja uma forma propositada de nos despertar logo a atenção, mas acaba por parecer uma decisão preguiçosa.