O presidente da Conferência Episcopal Portuguesa, D. José Ornelas, admitiu esta terça-feira que a estratégia inicial da Igreja Católica em Portugal para lidar com a crise dos abusos sexuais de menores cometidos por membros do clero não funcionou, motivo pelo qual foi necessário criar uma comissão independente para levar a cabo o trabalho de investigação sobre o assunto.

Do ponto de vista das vítimas, acabou por não funcionar“, disse D. José Ornelas, bispo de Leiria-Fátima e atual líder dos bispos católicos portugueses, depois de explicar como ao longo dos últimos dois anos foram criadas nas dioceses portuguesas várias comissões destinadas a receber denúncias de abusos sexuais de menores e a promover uma cultura de prevenção e proteção dos menores.

O bispo falava durante uma intervenção no colóquio “Abuso sexual de crianças: conhecer o passado, cuidar do futuro”, na Fundação Calouste Gulbenkian, em Lisboa, organizado pela comissão independente.

Enquanto as comissões diocesanas, ao longo de dois anos, receberam apenas cerca de meia dúzia de denúncias de abusos, a comissão independente já recebeu mais de 300 em cerca de três meses.

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Segundo Ornelas, foi “crescendo a compreensão” de que para o acompanhamento das vítimas era preciso “algo que fosse próximo, mantendo a distância”. Foi nesse contexto, explicou o bispo de Leiria-Fátima, que surgiu a ideia de criar a comissão independente liderada pelo pedopsiquiatra Pedro Strecht. “A comissão independente e a sua independência era para nós fundamentais.”

O bispo sublinhou que a “criação da comissão nasce da consciência da Igreja Católica em Portugal da gravidade destes abusos“, sobretudo depois de nos últimos anos a ciência ter revelado “o carácter devastador” dos abusos sobre as crianças. “A compreensão de tudo isto é recente no contexto da humanidade, mas é tremendamente importante para se descobrir o que estamos a tratar”, disse.

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Para o líder dos bispos portugueses, os abusos de menores são “particularmente graves” quando ocorrem no contexto da Igreja Católica, uma vez que afetam todo o sistema de “confiança e valores” associados à instituição.

“Daí a importância que colocámos na criação desta comissão. A autonomia e o carácter nacional são elementos fundamentais”, disse, acrescentando que a comissão tem o objetivo de “clarificar” a história dos abusos de menores na Igreja Católica ao longo das décadas.

A criação da comissão independente não significa, acrescentou Ornelas, que as comissões diocesanas de proteção de menores deixem de funcionar. Antes pelo contrário, afirmou que essas comissões “continuarão o seu trabalho de prevenção de forma constante”, com o objetivo de “criar uma cultura de respeito e de segurança“.

D. José Ornelas salientou também que é “igualmente importante” prestar cuidados aos abusadores. “Não é fácil, mas é fundamental.”

Dirigindo-se às vítimas de abuso, o bispo deixou um pedido de perdão. “Quero reiterar o pedido de perdão por toda a falta de atenção ao vosso sofrimento”, disse, acrescentando também um voto de “gratidão àqueles que ousaram ir além da dor” para denunciar os crimes. “Espero que a vossa coragem libertadora possa motivar outros em situação semelhante a dar também esse passo.

Marcelo acompanha trabalho da comissão

O Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, deveria ter estado presente na conferência organizada pela comissão independente, mas cancelou a sua presença à última hora, devido à morte de uma pessoa próxima. Ainda assim, o chefe de Estado enviou uma mensagem em vídeo na qual exprimiu “a forma empenhada como o Presidente da República acompanha o vosso labor, o labor da vossa comissão e os seus objetivos”.

Numa mensagem que consistiu quase integralmente na citação das palavras recentes do Papa Francisco durante um encontro com os membros da comissão pontifícia para a comissão de menores, Marcelo Rebelo de Sousa disse que não pode “dizer mais do que diz o Papa Francisco” terminou dizendo que acompanha o trabalho da comissão e “saudando a iniciativa da Igreja Católica Portuguesa“.

Em abril, num balanço dos primeiros três meses de trabalho após a sua constituição, a comissão que investiga abusos sexuais contra menores praticados por membros da Igreja Católica anunciou ter recebido cerca de 300 denúncias (um número atualizado, mais recentemente, para as 326). Dessas, 16 queixas tinham sido enviadas para o Ministério Público, por não terem sido ultrapassados os prazos legais previstos para a prescrição deste tipo de crimes. “Houve claras situações de graves abusos sexuais cometidos no interior da Igreja Católica portuguesa”, disse na altura Álvaro Laborinho Lúcio, ex-ministro da Justiça e membro da comissão.

O grupo admitiu também ter sido confrontado com casos de bispos que ativamente omitiram e desvalorizaram denúncias que lhes foram apresentadas ao longo das últimas décadas.