A Comissão Independente criada para investigar abusos sexuais na Igreja Católica portuguesa já recolheu 326 testemunhos de vítimas, anunciou esta terça-feira a investigadora Ana Nunes de Almeida, sublinhando que o número de potenciais vítimas pode ainda atingir “muitas centenas”.

Temos 326 testemunhos recolhidos até ontem [segunda-feira], de mais homens do que mulheres, de todos os grupos etários, de todos os níveis de escolaridade e temos todas as modalidades de abuso representadas no inquérito”, afirmou a socióloga, que integra a comissão criada em janeiro.

Na abertura da conferência “Abuso Sexual de Crianças: Conhecer o Passado, Cuidar do Futuro”, organizada pela Comissão Independente para o Estudo dos Abusos Sexuais contra as Crianças na Igreja Católica Portuguesa, Ana Nunes de Almeida realçou que “além dos 326 testemunhos diretos, somando o número de outras pessoas que dizem ter sido vítima de abuso também, esse número sobe para muitas centenas de crianças e adolescentes“.

A investigadora e membro da comissão garantiu também que “as entrevistas com dioceses estão a decorrer a muito bom ritmo” e que têm sido recolhidos relatos de experiência de contactos com abusos.

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Quanto ao acesso aos arquivos da Igreja, Ana Nunes de Almeida explicou que essa tarefa estará a cargo de uma equipa de historiadores sob a liderança de Francisco Azevedo Mendes, docente na Universidade do Minho.

Embora o trabalho desta Comissão Independente não vise a exposição direta de abusadores ou de instituições onde tenham sido cometidos abusos sexuais contra crianças, a socióloga e investigadora do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa reiterou a importância do conhecimento mais aprofundado da realidade.

“Conhecer a realidade é sempre reconhecer a sua complexidade intrínseca, é uma condição sine qua non para intervir. Não há mudança para melhor sem o contributo da ciência. Façamos da causa da luta aos abusos contra crianças uma causa civilizacional”, afirmou, na sessão que abriu a conferência realizada na Fundação Calouste Gulbenkian, em Lisboa.

Num balanço dos primeiros três meses de trabalho, feito no passado dia 12 de abril, o antigo ministro da Justiça Álvaro Laborinho Lúcio, que integra igualmente a Comissão, precisou que entre os 290 testemunhos até então validados, 16 ainda não prescreveram e, por isso, foram remetidos ao Ministério Público.

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As denúncias e testemunhos podem chegar à comissão através do preenchimento de um inquérito online em darvozaosilencio.org, através do número de telemóvel +351917110000 (diariamente entre as 10h00 e as 20h00), por correio eletrónico, em geral@darvozaosilencio.org e por carta para “Comissão Independente”, Apartado 012079, EC Picoas 1061-011 Lisboa.

A comissão integra ainda o psiquiatra Daniel Sampaio, a assistente social e terapeuta familiar Filipa Tavares e a realizadora Catarina Vasconcelos.

Comissão pede à Igreja para vencer “o medo”

A Igreja Católica portuguesa deve “vencer o medo” e entender que é do seu próprio interesse o trabalho realizado pela Comissão Independente, defendeu o pedopsiquiatra Pedro Strecht.

“A Igreja tem de continuar, através também da sua hierarquia, a vencer o medo e a perceber que se nos encomendou este estudo, o principal interesse da sua realização e da obtenção dos resultados é da própria Igreja. Vencer o medo vai ajudar cada vez mais (…) a distinguir melhor quem foram as pessoas que dentro da Igreja agiram de determinada maneira, percebendo que isso as distancia da Igreja em geral enquanto instituição”, sublinhou o coordenador da Comissão.

Com 326 testemunhos de vítimas recolhidos até esta segunda-feira, Pedro Strecht assumiu aos jornalistas, à margem da conferência “Abuso Sexual de Crianças: Conhecer o Passado, Cuidar do Futuro”, na Fundação Calouste Gulbenkian, em Lisboa, que “ainda continua a prevalecer o medo, a vergonha e a culpa”, mas que também há cada vez mais pessoas a sentirem-se aptas a testemunhar fruto do trabalho efetuado desde janeiro pela Comissão Independente.

“Temos atualmente conhecimento de muito mais, porque em mais de metade dos testemunhos as pessoas apontam – com elevado grau de certeza – a possibilidade de existirem mais vítimas. Isto é sempre a ponta de um icebergue, portanto, estamos a falar de uma realidade que vai emergindo, mas sobre a qual há uma outra da qual já temos alguns dados altamente prováveis e que, no final, serão com certeza muitos mais”, observou.

Confrontado com as recentes declarações do presidente da Conferência Episcopal Portuguesa (CEP), José Ornelas, que considerou “descabido” falar em encobrimento de abusos por responsáveis da Igreja, Pedro Strecht lembrou que o líder da CEP também vai estar presente nesta conferência e vincou a esperança de que não haja “ocultação da ocultação”.

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“Há apenas uma pequena questão de linguagem, porque ela tem, de verdade, um peso jurídico diferente e que é aquela que nos leva do encobrimento à ocultação. É sabido e claro para nós que existiu ocultação em várias situações por membros da Igreja Católica Portuguesa. O que pedimos neste momento e em todo o trabalho futuro é que não se faça de novo ocultação da ocultação”, salientou.

Pedro Strecht assumiu ainda que “era expectável” pela comissão o abrandamento das denúncias desde o primeiro balanço – em 10 de fevereiro, quando tinham sido recebidos 214 testemunhos – até agora, quando estão contabilizados 326 depoimentos. Por outro lado, o coordenador da Comissão Independente assinalou que a maioria destas vítimas continua a identificar-se com a Igreja Católica e que, por isso, devem ter o apoio da instituição.

“A grande percentagem das pessoas que responde ao inquérito considera-se católica à data dos abusos e, mesmo assim, continua a descrever-se após os abusos como maioritariamente católica. É gente da própria Igreja, que à Igreja em geral interessa continuar a cuidar, tanto agora como no futuro”, finalizou.