Em menos de três meses, foram já muitas as investigações em Portugal por suspeitas de aproveitamento da guerra na Ucrânia para burlas e tráfico de pessoas, incluindo de menores. Ainda que não haja nenhum caso confirmado de tráfico relacionado com a invasão da Ucrânia, os números oficiais apontam já para a existência de 22 denúncias. “Dessas, duas permanecem em análise”, revela o SEF ao Observador. Outras investigações focam-se no aproveitamento da guerra para a obtenção de dinheiro ilegal.

Num desses casos, que está a ser passado a pente fino pelo Ministério Público, sabe o Observador, tudo começou com uma publicação feita numa rede social dez dias depois do início da invasão da Rússia à Ucrânia, a 5 de março. “Recolhemos doações para ajudar na organização de transportes para levar ajuda e trazer refugiados” da Ucrânia, lia-se, na altura, na página de Facebook “Soutal Nova”, que está agora a ser investigada.

O inquérito “está sujeito a segredo de justiça”, confirmou a Procuradoria-Geral da República (PGR) ao Observador, e em causa estão, segundo o Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF), “indícios” da prática de “crimes de burla”.

Este não é, no entanto, um caso isolado: o SEF também confirma ao Observador que tem investigado outros casos que partem de suspeitas de tráfico de pessoas, incluindo de menores, e que acabam por resultar em inquérito por suspeitas de burla na recolha de apoios cujo destino não é totalmente claro. “Essas situações que chegam ao nosso conhecimento são participadas, obviamente, ao Ministério Público”, explicou Francisco Lourenço, inspetor-chefe do SEF.

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A associação que queria trazer 70 crianças para Portugal

A conta “Soutal Nova” é gerida por um casal – um homem português e uma mulher ucraniana –, de acordo com as informações que têm sido disponibilizadas ao longo dos últimos dois meses e meio nesta página do Facebook e cujas publicações têm uma frequência quase diária — por entre vídeos e fotos de material que, dizem, será levado para a Ucrânia. Neste caso, os pedidos feitos aos seguidores da página naquela rede social são sempre os mesmos: donativos em dinheiro para enviar material de ajuda humanitária para a Ucrânia e para trazer adultos, crianças e animais para Portugal.

O grupo não está constituído como associação e, na página de Facebook, o número de telefone indicado para que seja feito um donativo através do serviço MBWay é particular. Existem, pelo menos, três contas abertas na plataforma de crowdfunding GoFundMe: uma para, alegadamente, financiar o transporte de refugiados, outra para “ajuda humanitária” e uma terceira para resgatar animais. No total, o casal angariou até ao momento cerca de 1.400 euros. “Já entregámos toneladas de medicamentos para animais e para pessoas e temos mais para entregar nas próximas missões”, lê-se numa das contas de crowdfunding. Não é feita qualquer referência a quantas “toneladas” terão sido entregues até ao momento nem que parte das verbas angariadas foi gasta com material humanitário.

Não atingimos o financiamento necessário para concluir o nosso caminho até à Ucrânia. A nossa carrinha está pronta, os documentos estão resolvidos e agora só precisamos de um empurrão. Por favor, patrocine-nos para fazer esta missão”, lê-se numa das publicações, acompanhada de fotografias de medicamentos.

Questionado sobre a veracidade destas publicações — em que é pedido dinheiro em troca de ajuda prestada a ucranianos que estão a fugir da guerra —, o SEF explicou que investigou o grupo e que este tem mantido atividade não apenas no Facebook mas, também, no WhatsApp. “Os resultados dessa averiguação foram remetidos ao Ministério Público, por se tratarem de indícios relativos a crimes de competência de outras entidades”, refere o SEF ao Observador.

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O administrador da página, Rui de Sousa, nega, porém, qualquer caso de burla e adianta, em declarações ao Observador, que nunca foi contactado pelas autoridades a propósito da investigação em curso. Acrescentou ainda que todo o dinheiro doado é gasto em alimentos e medicamentos que são enviados para a Ucrânia, reafirmando o que tem sido escrito nas publicações (que foram enviadas toneladas de medicamentos e de comida).

Rui de Sousa explicou também que trabalha com duas associações sediadas na Ucrânia. “Não me recordo do nome, mas posso dizer-lhe depois”, respondeu quando questionado sobre as associações com as quais mantém contacto em território ucraniano.

Crianças: “Quem as quiser ajudar, é levar”

Entre as centenas de publicações já feitas, quem gere a página agora investigada pelo Ministério Público escreveu, a 8 de março, que 72 crianças ucranianas estariam a “ser dadas para adoção”. “Quem as quiser ajudar, é levar”, acrescentou. E vários utilizadores, através dos comentários, disseram estar disponíveis para acolher crianças em Portugal. “Eu recebo de braços abertos uma criança”, escreveu uma das pessoas.

Mas, afinal, nenhuma criança terá vindo para Portugal. “Como não recebi ajuda da Segurança Social para trazer as crianças, não trouxe. A única coisa que me disseram é que iam pô-las num orfanato e eu disse que não”, explicou Rui de Sousa, acrescentando que os menores terão ido para a Alemanha e para a Holanda, países onde “ficaram com famílias”. O responsável da página “Soutal Nova” diz, no entanto, não estar relacionado com o alegado transporte de crianças da Ucrânia para os dois países europeus que menciona.

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Esta publicação chegou inicialmente ao SEF através de uma denúncia que dava conta de suspeitas de tráfico de pessoas. Essa suspeita acabou por ser descartada depois de analisada, mas deu origem a um inquérito no Ministério Público por suspeitas de burla. Fonte oficial da Procuradoria-geral da República explicou ao Observador que, neste momento, não existem vítimas de tráfico humano em território português relacionadas com a Ucrânia. Os dados oficiais apontam para a existência de 22 denúncias. “Dessas, duas permanecem em análise, sendo que as restantes se revelaram infundadas pela não existência de indícios do crime em apreço”, acrescentou o SEF.

Desde que a Rússia invadiu a Ucrânia, têm chegado aos gabinetes do SEF situações relacionadas com crianças e que são investigadas. “Os indivíduos, através das redes sociais, difundem informação de que têm alguém na Ucrânia que tem a seu cargo, formal e judicialmente, um conjunto de menores órfãos e que pretendem arranjar famílias para eles em território nacional”, explicou o inspetor-chefe Francisco Lourenço. Depois, normalmente, é pedido um contributo para poder realizar as viagens entre a Ucrânia e Portugal.

O inspetor do SEF refere ainda que, muitas vezes, são publicados vídeos e fotografias e, “aparentemente, a história é verosímil”. Entre os vários casos investigados, há quem tenha dito nas redes sociais que trabalha diretamente com as autoridades, numa tentativa de dar credibilidade às histórias.

Numa perspetiva de alerta, o inspetor Francisco Lourenço aponta que “existe uma série de instituições públicas e privadas fidedignas que, de facto, fazem um trabalho meritório, de acompanhamento”, como a UNICEF, Cruz Vermelha ou Médicos do Mundo. Caso alguém tenha conhecimento de situações suspeitas que apareçam na internet, “deve reportar imediatamente às autoridades”.