“A ordem mudou, desenhe a letra Z , como no Zorro.” Quando M. ouviu aquelas palavras, ele e os colegas de pelotão já tinham passados muitas horas, durante a noite, a pintar listas brancas nos veículos blindados. Mas a ordem mudou. Os tanques foram lavados e a pintura recomeçou. Tudo aconteceu na véspera de chegar à Crimeia, a 24 de fevereiro, o mesmo dia em que a Rússia invadiu a Ucrânia. O soldado russo não fazia ideia: as comunicações com o exterior simplesmente não existiam. A sua história é contada, sob anonimato, à CNN.

Ainda antes de a guerra começar, M. era um dos muitos soldados russos que se acumulavam perto da fronteira ucraniana para aquilo que pensava ser um exercício de inverno. Apesar de no ocidente se gritar que uma guerra estava a caminho, que o Presidente Vladimir Putin ia ordenar a invasão da Ucrânia, M. diz que não pensou muito sobre isso. Nem mesmo quando, a 22 de fevereiro, ele e todos os homens do seu batalhão tiveram de entregar os seus telemóveis. Nessa altura, estavam estacionados em Krasnodar, sul da Rússia — a Península da Crimeia, território ucraniano anexado por ordem de Putin em 2014, estava a uma distância de pouco mais de 400 quilómetros.

Foi depois disso, já sem meios de comunicação no bolso, que M. e os camaradas pintaram Z atrás de Z nos veículos de guerra. “No dia seguinte, fomos levados para a Crimeia. Para ser honesto, pensei que não iríamos para a Ucrânia. Não pensei nunca que chegaria a isto”, confessou à CNN. Enquanto os soldados se reuniam na Crimeia, em Moscovo a “operação militar especial” tinha início. Mas M. não sabia. Nenhum dos seus colegas sabia. A notícia, conta o militar, nunca lhes foi contada e sem telemóveis não sabiam o que se passava.

Dois dias depois, a ordem chegou: iam seguir para a Ucrânia. “Alguns recusaram. Escreveram um relatório e foram-se embora. Não sei o que lhes aconteceu. Eu fiquei. Não sei por quê”. No dia seguinte foram e entraram no país vizinho. M. garante que não conhecia os objetivos da missão. Não ouviu o discurso do Presidente russo, não sabia que era preciso desnazificar a Ucrânia, e que o país era historicamente uma parte da Rússia, segundo a lógica de Putin, transmitida pela televisão. “Não fomos martelados com nenhum tipo de retórica sobre nazis ucranianos. E muitos de nós não perceberam para que serve isto e o que estávamos ali a fazer.”

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M., que assume não perceber muito de política, contou à CNN que esperava que houvesse uma solução diplomática para o conflito, e que sentia culpa e vergonha por estar a invadir outro país. “Estávamos sujos e cansados. As pessoas à nossa volta estavam a morrer. Não queria sentir-me parte disto, mas fiz parte disto.”

Foi preciso algum tempo para interiorizar o que se passava à sua volta e tomar uma decisão. Tinha de abandonar a guerra, demitir-se e voltar para casa.

Dos primeiros quilómetros, depois de passada a fronteira, a imagem que guarda na memória é de caixas de rações secas russas espalhadas por toda a parte e pilhas de equipamentos destruídos. E dos ucranianos. “Em geral, quando víamos os moradores, ficávamos tensos. Alguns escondiam armas debaixo da roupa e, quando se aproximavam, disparavam.”

Um desses momentos aconteceu quando se dirigiam para Kherson, cidade que atualmente está tomada pelos russos. M. estava sentado num camião Kamaz, armado e com duas granadas. Perto de uma aldeia, um homem, armado com um chicote, começou a atacar a coluna militar. “Vocês estão f*did*s!”, gritou-lhes. “Ele quase subiu na cabine onde estávamos. Os seus olhos estavam marejados de tanto chorar. Isso causou-me uma impressão forte.”

Nesses momentos, em que se cruzava com ucranianos, escondia a cara por segurança, mas também por estar envergonhado de estar a ocupar aquelas terras. “Durante a primeira semana, fiquei em estado de choque. Não pensei em nada”, relatou. “Ia para a cama e pensava: Hoje é 1 de março. Amanhã vou acordar, 2 de março — o principal é viver outro dia.'”

As semanas foram passando e o pelotão passou a ter acesso a um rádio, onde ia tendo notícias da Rússia e da guerra. M. percebeu que a economia do seu país estava a entrar em colapso. “Senti-me culpado. E ainda mais culpado por estarmos na Ucrânia.”

Foi nessa altura que a sua decisão começou a ganhar forma e força. M. foi ter com o comandante, mesmo sabendo que corria o risco de ser julgado por traição. Isso mesmo lhe foi recordado, enquanto a carta era recusada e o comandante lhe dizia que era impossível não servir. “Disse-me que poderia haver um processo criminal. Que rejeição é traição. Mas eu mantive-me firme.” O oficial passou-lhe uma folha de papel e uma caneta e a carta de demissão foi escrita na hora. M. conseguiu voltar para a Rússia. O futuro? “Não sei, mas estou feliz por regressar a casa.” Estar vivo, sabe, “é um milagre”.