Este artigo foi originalmente publicado no 7.º número da revista DDD – Dê de Delta.

Texto: Tiago Pais

Fotografia: Rodrigo Cabrita

Quando se entra no gabinete de Adelino Cardoso, a primeira coisa que chama a atenção não são os souvenirs ali reunidos, vindos de diferentes países produtores de café, mas antes o seu computador. Mais concretamente, o respetivo monitor, onde parece correr um jogo de estratégia, com gráficos coloridos, a fazer lembrar alguns clássicos que se popularizaram nos anos 90. Só que esse presumível jogo é, na verdade, o sistema informático que permite controlar todo o processo de torra do café, pelo qual Adelino se tornou, desde há muito, o maior responsável.

Nem sempre foi assim. Adelino Cardoso é um dos funcionários mais antigos da Delta e quando entrou para a empresa, em 1977, ainda adolescente, prestes a completar 17 anos, o mesmo processo assemelhava-se mais aos Jogos sem Fronteiras do que a um jogo de computador. “Ui, isto agora é um luxo”, ri-se, quando lhe pedimos para comparar as duas eras.

Adelino Cardoso, 62 anos, coordenador da torrefação e mestre cafeeiro da Delta Cafés, está na empresa desde 1977.

“Quando entrei, havia um torrador de 120 quilos. Os sacos de café eram colocados junto ao torrador e ele torrava por origem. Era tudo misturado manualmente, mediante o peso de cada um e as indicações do senhor Rui Nabeiro. A quantidade que estava nessa misturadora seria cerca de 250 a 300 quilos de café. Retirávamos o café para sacos de plástico, que enchíamos, púnhamos às costas, subíamos para um escadote e despejávamos para dentro de dois depósitos: por baixo estavam umas máquinas, com um tambor, que colocava aproximadamente 1000 gramas de café torrado no pacote. Havia uma senhora a encher. Duas senhoras a pesar, três a fechar e dois ou três, dependia dos serviços, a ensacar. O pacote era fechado, colocado ao lado, e depois seguia para o armazém em sacos de 20 quilos.”

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Ao contrário de outros funcionários da Delta e do Grupo Nabeiro, que vão passando por diferentes áreas dentro da empresa, Adelino Cardoso esteve sempre ligado à torrefação. Chegou a acompanhar torras nas antigas bolas de 30 quilos, como a que torrou os primeiros lotes de café da Delta, logo a partir de 1961, e que é hoje uma das peças mais emblemáticas do Centro de Ciência de Café. “Lembro-me de, nessa altura, o café arrefecer no chão”, conta. O seu historial nesta área da empresa dá-lhe, por isso, uma visão privilegiada não só da evolução do processo da torra, mas também da sua importância para a qualidade do produto que chega aos clientes.

“No café há três fatores que eu considero muito importantes: as origens, a torra e o processo de extração do café. Se tudo isto não estiver muito bem trabalhado, com o conhecimento do produto que nós estamos a colocar no torrador, não vamos conseguir tirar o máximo partido do café.”

Existem vários tipos de torra de café. Há quem torre mais, quem torre menos, quem prefira o grão mais claro ou mais escuro – tudo depende do que se procura obter do café. Adelino repete várias vezes ao longo da conversa que o que se pratica é a “torra Delta”, um processo que visa “valorizar o café e não destruir os seus compostos químicos”. Essa torra Delta não é uma simples receita, mas antes um conjunto delas, ajustadas a cada origem de café. Porque, explica, para se torrar bem, é preciso conhecer o que se está a torrar.

O sistema informático mostra, em tempo real, o circuito de transporte de café no processo de torrefação.

“Eu costumo dizer o seguinte: se nós temos cinco dedos na nossa mão e nenhum é igual, veja bem a quantidade de grãos de café que entram num torrador, de altitudes diferentes, de processos de benefício diferentes, cafés que estagiaram ou não nos países de origem. Por isso, a boa torra começa um pouco mais atrás, nas origens do café. Há origens de processos naturais, de processo húmido – que são os cafés lavados –, há os cafés de altitude, os robustas africanos, os asiáticos… Cada café é um café e cada café se comporta de forma diferente, mediante as temperaturas. Nem todo o café tem o mesmo corpo, a mesma humidade de origem, o mesmo armazenamento, embarque, há variáveis que depois se podem refletir na torra. Por isso é que é importante conhecermos as receitas para cada tipo de café, para que não haja qualquer alteração no perfil sensorial desse café, dessa origem.”

Antes ainda de chegar aos torradores, o café faz um percurso bem definido e com vários níveis de controlo de qualidade pelas instalações da Novadelta. É o chamado processo de aceitação do café. Adelino recita esse passo a passo com a ligeireza de quem há muito lida com a matéria-prima.

“Quando o café chega, cortamos o selo do contentor e temos o primeiro contacto com o café no aspeto visual e olfativo. Abre-se o contentor e tira-se uma amostra ou vê-se logo o odor do que está no contentor. Se houver um odor atípico muito agressivo, não pode ficar nos armazéns. Tem de ficar fora para não contaminar, porque o café é muito sensível aos odores e à humidade. Se o café não apresentar qualquer odor atípico, é descarregado. Tira-se uma amostra de todos os sacos – ou quase todos os sacos – que vai para o laboratório. E torramos mais ou menos 150 gramas de café nos torradores do laboratório.

Podem parecer amendoins, mas são grãos de café que ainda não passaram pelo processo transformador da torra.

A torra no laboratório não é igual à torra do produto final. É mais leve, resulta num café que Adelino descreve como “mais aberto”. Não interessa tanto o creme, mas sim revelar todos os seus sabores e aromas. O café torrado no laboratório é moído e depois colocado em dez taças, a que se acrescenta água em ebulição. É mexido e depois provado. No mínimo, cabe a três provadores aspirarem o café a partir de uma colher própria, de forma a melhor sentirem as suas características. Sim, aspirarem. “Temos de levar o café ao céu da boca e deixá-lo cair”, descreve Adelino. Esse método, a chamada ‘cata brasileira’, permite apreciar o aroma, a acidez e a intensidade do produto. É a melhor forma de identificar as suas qualidades e defeitos.

“Depois de provado e aprovado, esse café entra noutras análises físico-químicas, que também são feitas nas nossas instalações. Passados dois ou três dias, o café fica no entreposto aduaneiro à nossa consideração, para que quando esse café seja necessário – mediante os blends – possa ser solicitado. O café entra nessa linha de produção, após o processo de limpeza. Só depois de estar limpo e de estar nos silos de café verde, conforme o tipo e a origem, a receita de torra desse café é solicitada, o programa puxa essa mesma quantidade de café e envia para o torrador.”

O programa é o tal sistema informático que parece um jogo. É onde tudo se controla e visualiza. E o torrador é onde a magia acontece. Onde o café verde se transforma em grão, onde os seus aromas se libertam e onde todo o seu potencial é concretizado. Para tal, há que respeitar alguns princípios muito importantes, de forma a conseguir desenhar a curva da torra – a relação entre o tempo que o café está no torrador e a temperatura a que este se encontra – adequada à origem e ao que se pretende obter no grão de café. E neste processo há um momento fundamental, o chamado ponto de inversão.

“Quando o café entra, a temperatura do torrador, que está a 210/215 graus, desce brutalmente, porque é um produto frio. E depois estabiliza. O ponto de inversão é quando ela estabiliza, são esses segundos em que estabiliza. Não podemos baixar muito dos 95 graus porque a recuperação pode ser muito lenta. E o café tem de ter o seu tempo de torra. Não pode ser torrado com temperaturas excessivas porque vai picar o café, vai fogueá-lo. Se esse café tiver um choque térmico muito agressivo no torrador, vai fazer com que liberte os óleos e as gorduras: o café contém mais ou menos 14% de óleos e gorduras. E se levar um grande choque térmico, com calor excessivo, esse café passado duas três horas liberta esses óleos. Vemos um café que parece que está molhado, mas não é molhado –  foi porque o processo de torra não foi ajustado à temperatura indicada e a curva da torra não foi feita.”

O tempo definido para cada torra é religiosamente respeitado, mesmo que isso obrigue a Delta, hoje em dia, a torrar café ininterruptamente durante as 24 horas do dia. Era possível fazer de outra forma? Era. Mas, como diz o anúncio e repete Adelino, não era a mesma coisa.

“Neste momento estamos a torrar 24 horas. Mas podia, eventualmente, reduzir-se para menos tempo. Em vez de estarmos a fazer torras de 20 minutos, em média, podia fazer-se 18, 16, 17. Mas a qualidade não seria igual. E o nosso foco é a qualidade. Nos parâmetros em que nós analisamos o café, em que temos de ir à procura do corpo na bebida, no aroma, na acidez, no seu gosto residual – que é o primeiro impacto do café na boca – na sua persistência… Tudo isto são parâmetros de análise que são dados pelo processo de torra. Se eu lhe dou um choque térmico agressivo, desprotejo o meu café, destapo o meu café. É como estar a chover e eu ir para a rua sem um guarda-chuva.” E ninguém se quer constipar. Sobretudo nesta altura.