Poderia ser descrito como uma espécie de coluna vertebral dos Depeche Mode. Era o primeiro a dizer que, do trio de fundadores que constituiria a âncora da banda durante perto de quatro décadas, era o que musicalmente tinha a maior costela pop e seria o menos virtuoso — mas, não sendo o compositor de serviço, era o profissional de excelência, o homem dos bastidores, com a maturidade e a lucidez necessárias para não deixar o comboio e o ritmo descarrilarem quando a banda se tornava assustadoramente grande, perigosamente autofágica.

“Andy” Fletcher, apenas “Fletch” para os mais próximos e para os fãs devotos que tinham nos Depeche Mode a sua religião pessoal, não era a estrela rock vistosa ou o performer exuberante que Martin Gore (guitarrista e teclista) e sobretudo Dave Gahan (o principal vocalista) seriam. Mas o seu contributo na banda foi inestimável: era a rede que permitia a Gahan e Gore não cair, que garantia que a invenção musical era temperada com melodias que haveriam de tornar as canções dançantes rapidamente memoráveis ao ouvido.

Já não poderá mais dar o seu contributo, a não ser pela fonte de inspiração que continuará ainda a ser para os Depeche Mode sobreviventes e para todos os que o ouviram: Andrew John Leonard Fletcher morreu esta quinta-feira, com apenas 60 anos. Não se conhece ainda a causa de morte.

O anúncio foi feito pela banda britânica de que Andy fazia parte como teclista — e que definiria como poucas o som (que é como quem diz: o synth-pop, a new wave e a dança pós-punk eletrónica) dos anos 80 e início dos 90’s. Através de uma mensagem publicada na conta oficial dos Depeche Mode na rede social Twitter, o mundo era informado: “Estamos chocados e com uma tristeza avassaladora pela morte do nosso amigo, familiar e colega de banda Andy “Fletch” Fletcher.”

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O Fletch tinha um coração verdadeiramente de ouro e estava sempre lá quando precisavas de apoio, passasse esse apoio por uma conversa animada, por uma boa gargalhada ou por uma cerveja gelada”, lê-se na nota.

A mensagem termina em tom solidário com a família: “Os nossos corações estão com a sua família e pedimos que a mantenham nos vossos pensamentos e que respeitem a sua privacidade neste momento difícil”. O músico era casado com Gráinne Mullan desde 1993 e tinha dois filhos.

A faceta pop de uma banda noturna (e com as suas sombras)

Nascido em 1961 em Nottingham mas tendo crescido em Basildon, uma cidade do condado de Essex com perto de 100 mil habitantes, “Fletch” formou com um amigo chamado Vince Clarke — com quem já tivera uma banda chamada No Romance In China — e com Martin Gore o grupo Composition of Sound. Foi essa a origem do que viriam a ser depois os Depeche Mode, que ganhariam forma quando o vocalista Dave Gahan se juntou.

A música era uma paixão e na banda sonora habitual, Fletcher tinha os Orchestral Manoeuvres in the Dark, os The Cure e Siouxsie and the Banshees, por exemplo, mas também a dança futurista dos Kraftwerk e o pós-punk desesperadamente festivo.

Tudo isso vinha, de uma forma ou de outra, a marcar aquela época para quem crescia com o sonho de fazer música sintonizada com a pop e, em simultâneo, com a música notívaga mais original. E tudo isso viria a marcar o percurso de “Fletch” e dos Depeche Mode, como marcariam os Talking Heads, os Cabaret Voltaire e mesmo a composição clássica e negra das canções de blues e country, que Dave Gahan idolatrava e sonhava atualizar.

O primeiro álbum, intitulado Speak & Spell, foi editado em 1981. E chegaria às lojas cavalgando já o sucesso de um êxito borbulhante para as noites e as pistas de dança, “I Just Can’t Get Enough”, tal como fama tinha já também (ainda que se viesse a revelar menos duradoura) o single “New Life”.

A popularidade da banda no Reino Unido chegaria rápido, fazendo logo de Vince Clarke, insatisfeito com o rumo dos Depeche Mode, a primeira baixa — viria a ser substituído durante largos anos por Alan Wilder. Mas seriam precisas mais canções e discos até que o sucesso se começasse a propagar pela Europa, primeiro (com “People Are People”), e pelo mundo, depois, com canções marcantes como “Personal Jesus” e “Enjoy The Silence” e com álbuns como Violator (1990), Songs of Faith and Devotion (1993) e Ultra (1997), tendencialmente mais sombrios e densos.

Daí em diante, a máquina Depeche Mode não parou. Nem sempre nas melhores graças da crítica, nem sempre capazes de cativar gerações posteriores, foram mantendo os velhos fãs sempre por perto, a memória como aliado inseparável. E o trabalho, imparável: há cinco anos, em 2017, lançavam o 14º álbum de estúdio (Spirit), mais uma edição por entre digressões consecutivas, música para as massas continuamente tocada em festivais apinhados e um total de discos vendidos que supera 100 milhões de unidades.

Em 2009, numa entrevista ao jornal alemão Die Welt, Andy descreveria assim o seu papel na banda: “Sou o oposto do Dave. Sou um músico mas nas ruas ninguém me reconhecerá. Dentro da banda, contribuo com pop. O Gore, que escreve a maioria das canções, adora o blues e country americanos. E o Dave descobriu o jazz por si mesmo. Eu, contudo, vou provavelmente sentir-me eternamente leal às melodias pop simples e à leveza que elas trazem“. Da próxima vez que alguém dançar “Personal Jesus” fora de horas, que seja em sua homenagem.