No dia em que se assinala o primeiro ano de atividade da Procuradoria Europeia, José Guerra fala sobre a experiência de atividade no organismo, que já permite uma perceção sobre os altos e baixos e as áreas a reforçar. O Plano de Recuperação e Resiliência (PRR) e os metadados são temas que destaca e que estão sob a atenção da entidade europeia.

Para José Guerra, a Procuradoria Europeia deve, “com grande probabilidade”, pronunciar-se sobre a questão dos metadados, explica o procurador, que entende que a lei que o Tribunal Constitucional chumbou era “bastante respeitadora dos direitos fundamentais”.

“Entendo que com grande probabilidade esta questão se colocará em processos pendentes na Procuradoria Europeia [EPPO, na sigla inglesa] e tendo o colégio por função tomar decisões estratégicas, não sobre casos concretos, mas sobre questões estratégicas que emerjam de casos concretos, é altamente provável que esta questão se venha a colocar”, disse José Guerra em entrevista à Lusa a propósito do primeiro ano de atividade deste organismo, que se assinala esta quarta-feira.

José Guerra sublinhou que a sua experiência de anos no Departamento de Investigação e Ação Penal (DIAP), na secção que tinha sob as suas competências os crimes informáticos, o levam, “naturalmente”, a ter opinião sobre a polémica dos metadados em Portugal e implicações do acórdão do Tribunal Constitucional (TC), mas defende que enquanto for procurador europeu não deve comentar “leis nacionais, a menos que sejam francamente violadoras ou ponham fortemente em causa a atividade da EPPO, o que não é o caso”.

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A questão dos metadados é uma questão que não é exclusiva de Portugal, é uma questão que é transversal a toda a União Europeia. Eu não vou comentar o acórdão do TC. O que lhe posso dizer é que como jurista compreendo perfeitamente o debate”, disse.

“Compreendo perfeitamente a posição do Sindicato dos Magistrados do Ministério Público [SMMP], mais do que compreendo a posição e as preocupações da Procuradoria-Geral da República [PGR] e de toda a comunidade jurídica e judiciária nacional, porque é de facto uma questão muitíssimo complexa, que exige uma resposta de grande complexidade, mas não me vou pronunciar sobre uma questão que é de natureza puramente interna”, acrescentou.

Disse, no entanto, ser da opinião que a legislação nacional transpunha a diretiva europeia sobre metadados “de forma bastante cautelosa, bastante respeitadora dos direitos fundamentais”. “Essa diretiva foi posta em causa pelo Tribunal de Justiça da União Europeia. A nossa legislação manteve-se e agora foi posta em causa pelo TC. O Governo procurou uma solução para resolver a situação, como é da sua competência”, disse sublinhando novamente não querer comentar “questões de legislação interna”.

O Tribunal Constitucional (TC), em acórdão de 19 de abril, declarou inconstitucionais normas da chamada lei dos metadados que determinam que os fornecedores de serviços telefónicos e de internet devem conservar os dados relativos às comunicações dos clientes – entre os quais origem, destino, data e hora, tipo de equipamento e localização – pelo período de um ano, para eventual utilização em investigação criminal.

A proposta de lei do Governo entregue na passada semana na Assembleia da República estabelece para fins de investigação criminal o acesso à “data da chamada, grupo data/hora associado, serviço e número chamado”, entre outros elementos.

A nova lei irá atribuir “às autoridades judiciárias a competência para solicitar à empresa que oferece redes e ou serviços de comunicações eletrónicas” os metadados, “quando haja razões que sustentem a indispensabilidade da informação para a descoberta da verdade ou a impossibilidade ou dificuldade de obter prova de outra forma”.

A proposta do Governo levantou preocupações à Polícia Judiciária e ao Ministério Público, que questionam os efeitos do acórdão do TC nas investigações criminais. Também a ex-PGR Joana Marques Vidal, já depois de conhecida a proposta de lei do Governo para contornar o chumbo do TC, admitiu a sua perplexidade com o facto de ser possível armazenar dados para efeitos comerciais, mas não para investigação criminal.

Procuradoria Europeia supera os 4.000 casos no primeiro ano de atividade

Com 4.006 processos participados e 929 investigações abertas no primeiro ano de atividade, a Procuradoria Europeia prepara-se para produzir o seu primeiro megaprocesso “nascido” em Portugal.

Em entrevista à Lusa, o procurador europeu José Guerra disse que a experiência da EPPO – traduzida ainda em 259 milhões de euros arrestados, 28 acusações e quatro condenações, entre processos “herdados”, avocados e criados – já possibilita “uma perceção dos altos e baixos” da atividade e a identificação de áreas a reforçar, além de estar prestes a fechar uma investigação oriunda de Portugal que causou centenas de milhões de euros de prejuízo.

“É seguramente um dos casos mais importantes que estão pendentes na UE”, resumiu o magistrado português sobre este caso de fraudes de IVA cuja instauração até esteve em dúvida, pois Portugal, que era o país que tinha a informação necessária para abrir a investigação, não era o país onde se tinha registado o prejuízo. Por outro lado, assegurou que o organismo – que agrega 22 dos 27 Estados-membros da União Europeia (ficam de fora Irlanda, Dinamarca, Suécia, Polónia e Hungria) – está confiante na recuperação de “montantes significativos”.

José Guerra reconheceu, porém, que a experiência em Portugal “não é tão vasta”, uma vez que até ao momento não foram enviados casos para julgamento, mas mostrou-se otimista: “Creio que dentro de pouco tempo teremos essa experiência também. Temos denúncias feitas quer por particulares, quer por entidades públicas, quer pelo próprio Ministério Público [MP]”.

Sem deixar de enfatizar a EPPO como “um valor acrescentado no contexto das investigações”, José Guerra notou que o organismo sediado no Luxemburgo “é mais do que a mera soma das partes”. O magistrado português admitiu que o universo de procuradores ainda não está totalmente preenchido e que, quando isso se verificar, haverá um total de 140 procuradores para combater crimes relativos aos interesses financeiros da União Europeia (UE).

“A UE é financiada pelos Estados-membros e esses Estados-membros são financiados pelo dinheiro dos cidadãos. Cada euro que é roubado por organizações criminosas é o de todos nós que está a ser utilizado de forma abusiva e disruptiva, pondo em causa a mais básica e salutar convivência também entre empresas. É inaceitável não só do ponto de vista do bom funcionamento da economia, mas também da democracia”, defendeu.

O procurador europeu refere que o organismo tem uma estrutura de dois níveis: um nível local, em que atuam os procuradores europeus delegados, que mantêm a qualidade de magistrados nacionais e são supervisionados pelo procurador europeu do respetivo Estado de origem; e um nível superior, no qual as investigações são monitorizadas e dirigidas pela câmara permanente, do qual o procurador europeu supervisor não faz parte.

Adianta que os casos que estão em investigação em Portugal nunca poderão estar distribuídos à câmara permanente da qual faz parte para evitar conflitos de interesse. “Somos um corpo de magistrados que funciona transversalmente em todo o espaço dos 22 Estados que fazem parte. O que não temos é uma jurisdição única: investigamos de acordo com a lei portuguesa e dirigimo-nos aos tribunais portugueses ou de acordo com as regras espanholas e dirigimo-nos aos tribunais espanhóis. Não há tribunais europeus”.

Questionado sobre os desafios para o futuro da EPPO, o procurador traça como prioridades o funcionamento pleno das unidades de apoio ao nível central no Luxemburgo, como a unidade de análise financeira e a unidade de recuperação de ativos. Já a nível nacional, observou “uma série de questões a resolver”, nomeadamente as instalações definitivas no Porto e a definição de um enquadramento jurídico para facilitar a mobilização de recursos e meios.

Plano de Recuperação e Resiliência estará “sob a atenção” da Procuradoria Europeia

O Plano de Recuperação e Resiliência (PRR) será fiscalizado pela Procuradoria Europeia, ainda que não tenha sido convidada pelo Governo português a integrar a comissão de acompanhamento do programa, explicou o procurador europeu José Guerra.

Há cerca de duas semanas, um relatório de acompanhamento do Ministério Público ao PRR apontava problemas como falta de recursos humanos especializados para acompanhar o programa e falhas ao seu sistema de controlo, nomeadamente nos mecanismos de prevenção de conflitos de interesses, de fraude e corrupção, um documento cujo teor José Guerra recusou comentar.

Destacou, por outro lado, que do ponto de vista da EPPO, “é um pouco despiciendo” centrar a análise nos programas comunitários em que as verbas, e os crimes, têm origem, uma vez que se trata sempre de dinheiro da União Europeia (UE) e discutir se o problema está no PRR ou não “serviria apenas para alimentar uma discussão à qual a EPPO não se quer juntar”.

“Do ponto de vista jurídico-criminal, do ponto de vista da proteção dos interesses da UE, não há nenhuma diferença entre o dinheiro vindo de um programa ou do programa anterior. É dinheiro da UE. Seja qual for o programa que originou esse dinheiro, nós protegê-lo-emos com a mesma intensidade, com o mesmo empenho e com a mesma força”, disse.

José Guerra recusou que o PRR possa trazer um problema de sobreposição de competências na investigação entre a EPPO e o Ministério Público (MP) nacional, sublinhando que as situações previstas no regulamento em que os MP nacionais têm primazia na investigação deixam pouca margem para que a situação se coloque.

“Vejo com muita dificuldade que haja aqui sobreposição de competências, mas de qualquer forma, não é para mim nenhuma preocupação, porque eu não tenho das relações entre a EPPO e o MP nacional uma visão concorrencial ou competitiva. A visão que eu tenho é uma visão de complementaridade. A EPPO foi criada para reforçar a proteção dos interesses financeiros da União Europeia e não para ser um qualquer ‘primus inter pares’”, disse.

Ainda assim, se a situação se puser, José Guerra explicou que a Procuradoria Europeia não terá “nenhum problema com isso” e disse esperar uma atitude recíproca de colaboração, assim como aproveitar o conhecimento acumulado do MP português, que salientou ter “uma enorme experiência na investigação destes crimes”, além de “muita informação que seguramente será útil” à EPPO.