“Passaram dois anos desde que o mundo parou, ou achámos nós que parou.” Começa por escrever-nos Ana Pais. Acabada de chegar do Brasil, é no rescaldo da sua última viagem que a nossa conversa acontece. Levou dias até que chegássemos ao lugar que recebeu pela primeira vez o manuscrito da investigadora de Affect Studies — o Teatro do Bairro Alto.

Esses dias traduziram-se em muitas horas de memórias, cujo destino é pensarem um futuro e não se ficarem por relatos de um passado. Mas não foram tantos quanto os da inevitabilidade de uma “não-vida” – também entendida como Covid-19 — se disseminar pelo mundo inteiro e provocar um choque emocional e a mala feita para agitar. E é através deste manuscrito que a investigadora em artes performativas, dramaturga e curadora dá palco a um conjunto de episódios que vão acompanhando abordagens teóricas contemporâneas e que têm como destino perspetivar o futuro – mesmo que diga não ser futurologista.

Costuma perguntar em que pode ser útil nas situações que atravessa. Procurou uma utilidade, ainda que não pudesse ser tão imediata quanto a dos profissionais de saúde, trabalhadores da logística, limpeza e saneamento.

Fui privilegiada por ter podido ficar em casa. Porém, também me considero uma trabalhadora essencial para os tempos que atravessamos, não só porque estamos em vias de sair de uma pandemia, à qual se podem seguir outras, mas também porque a vulnerabilidade e as desigualdades que ela exacerbou são terreno fértil.”

Não decidiu escrever este livro. Foi uma “inevitabilidade” que se tornou evidente no momento em que a pandemia “estoirou nos nossos rostos.” Acompanhou os noticiários, os especialistas e todas as epifanias que foram ganhando vida. Porém, Ana Pais acredita que ainda não falámos o suficiente sobre ela. E este é o livro que parte de um “Retro-Sentido” e acaba na “Pele”, um epílogo que nos fala sobre um lugar de manifestação de sensibilidades para com o outro.

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Escreveu-o ao longo de dois anos num processo bastante orgânico. Primeiro deu corda a uma escrita “à flor da pele”, ainda que não o considere como um registo de diário. “Tratava-se mais de uma crónica pessoal de acontecimentos, com alguns apontamentos sobre a minha experiência”, mas o objetivo era fazê-lo chegar a um leitor futuro.

O vírus da Covid-19 afrouxou, mas não deixou de “dominar os movimentos, pensamentos e emoções dos seres humanos e enredou-os no nosso tendão de Aquiles: a mortalidade, ou o medo dela”. É esta a frase que acompanha o terreno engenhoso que a autora diz ser rapidamente dissolvido pelos movimentos conservadores de extrema-direita, permitindo-lhes terem mais recetividade, ou na emergência de conflitos mundiais. “A vulnerabilidade é recetiva à empatia demagógica e frágil perante forças destrutivas”, continua.

Burilou o texto e repensou a estrutura das oito dezenas de páginas que escreveu, ali entre o final 2020 e início de 2021. Não podia ser cronológica. “Todos queremos deixar para trás este período, não revivê-lo; a questão é como fazê-lo sem esquecer aquilo que deixou de ser possível ignorar para não repetirmos os mesmos erros.” E foi desta forma, que trouxe à tona uma consciência de condicionamentos culturais dos sentimentos públicos.

A narrativa que se dilui ao longo do livro, com apontamentos cruciais sobre as teorias contemporâneas dos afetos passa também por momentos onde a proximidade física se tornara um medo, como o espetáculo Madalena que “estreou num dia raro e num ano raro” ou as repetidas imagens do vazio substancial da comemoração do 25 de abril em 2020, como uma passagem direta para a “expropriação das nossas cidades” enquanto “telenovela dos media”. No seu conjunto de palavras não há personagens que não sejam reais.

Mas não se fica por aqui.

A diversidade contida nos formatos dos 16 capítulos parte também das suas experiências individuais que sucumbem para um universo coletivo e é nessa medida que a autora pretende trabalhar a consciência dos sentimentos públicos. “É absolutamente necessário desenvolver uma consciência coletiva sobre o modo como os afetos que circulam no espaço público nos afetam e influenciam a nossa experiência individual”, justifica Pais.

“Por sua vez, não há descoberta coletiva que não decorra da conjugação de múltiplas descobertas individuais. Estas podem acontecer em sincronia por uma série de fatores, sobretudo em situações limite ou de acumulação de condições de vida desfavoráveis”.

Mostrando-se uma porta de entrada a um espaço de escuta – além de debate – a esperança é fazer deste livro um lugar fundamental para a saúde emocional coletiva, “uma saúde contaminadora de forças que nos elevem além da nossa pequenez individual, para podermos efetivamente continuar as nossas vidas com alguma lucidez e perspetiva sensível”, deseja a autora. É neste sentido que o vê como reflexo de serviço público.

Mas e hoje, de que forma estes públicos que relaciona, transmitem ou digerem os seus afetos? É uma questão que ainda carece de resposta. Ana Pais também nos questiona: “Como queremos digerir e transmitir os nossos afetos no espaço coletivo hoje, depois de uma experiência como a da pandemia?” Começando por “escutar profundamente as cicatrizes desta experiência”.

Para a autora, talvez seja o primeiro passo a dar, criando espaços de escuta coletiva, fomentando o debate e a partilha. É com esse objetivo que vai dar também um workshop no mesmo dia do lançamento do livro, para que se reflita sobre os afetos durante a pandemia em discursos políticos, mediáticos, económicos e culturais, trazendo também para a discussão as práticas performativas recentes.

Ainda assim, este é só mais um destino depois da partida ser o corpo “um bom lugar para começar esse processo de escuta”. Caso contrário, “continuaremos a seguir em frente, na direção de um mundo cada vez mais tecnológico, cada vez mais rápido, cada vez mais distante das necessidades básicas do ser humano: o contacto e o vínculo de interdependência com os outros”, insiste Pais.

Este conceito de interdependência só faz sentido enquanto relacionado com a humanidade. A investigadora diz ser até “imprescindível”.

“Para que esse valor se manifeste enquanto fundamento de práticas culturais e de espaços sociais é preciso saber discernir o que influencia e condiciona a nossa experiência afetiva, ou seja, os afetos produzidos socialmente, mas que experienciamos como nossos”, continua.

Quem tem medo das emoções? é o terceiro livro de Ana Pais publicado, depois de O Discurso da Cumplicidade. Dramaturgias Contemporâneas e de Ritmos Afectivos nas Artes Performativas. É uma das poucas investigadoras que se dedica às Teorias dos Afetos a partir do universo performativo em Portugal. “Não existe propriamente uma disciplina, mas uma área de interesses onde confluem diversas perspetivas sobre os afetos e o corpo na sua relação com o mundo”, explica Pais. Talvez seja essa a razão da sua pontualidade temática, juntamente com a falta de uma recetividade do campo académico anglo-saxónico: “não tem sido muito recetivo em acolher e/ou interpelar discursos sobre os afetos de outras zonas geopolíticas”. Mas esta era outra conversa.