“O Sol ergueu-se. Os pássaros, com o peito salpicado de amarelo e rosa, cantavam juntos uma ou duas melodias. Depois, subitamente, ficavam em silêncio e partiam. Sobre a casa, o sol lançava agora raios mais largos; tornava mais agudos os contornos das cadeiras e das mesas e iluminava a renda branca das toalhas. Tudo perdia docemente a sua forma”.
Assim nasce mais um dia no grande oceano da vida humana. É o principio, o recomeço, o tempo aberto a todas as possibilidades, ainda sem peso, sem arrependimentos. Caminho aberto a todos os sonhos, ondas sem princípio nem fim que nos vão conduzir pela vida de seis personagens desde a sua infância até à sua morte sem que nunca estejamos noutro lugar senão de dentro dos pensamentos de cada uma delas. São seis solilóquios, seis poemas que compõem o livro mais radical da escritora inglesa Virginia Woolf, aquele onde ela quis “encontrar a chama mais intima” mostrando o desejo humano de captar cada instante da sua existência como se ele fosse uma cena, contá-lo a si mesmo antes que ele se perca na passagem do tempo.
Impossível de categorizar, este livro a quem uns chamam romance, outros chamam poema. As Ondas representa um salto no vazio na literatura do século XX (foi escrito em 1931), tal como o fora Em Busca do Tempo Perdido de Proust, Ulisses, de James Joyce, ou O Livro do Desassossego de Fernando Pessoa. São lugares sem retorno, produções do espírito humano que se transformam em Cultura (Georges Simmel) pois modificam tudo à sua volta, em especial todos os fluxos espirituais subsequentes. A sua estrutura, a sua linguagem em prosa-poesia que nos leva a lugares ignotos e ínfimos do mundo interior dos seres humanos, tornam este livro um cabo impossível de ser dobrado por muitos leitores, até leitores de poesia.
Isto faz com que seja justo destacar a coragem do Colectivo Meia Volta ao pegar neste texto, nos pensamentos de Rhoda, Susan, Jinny, Louis, Bernard e Neville, para falar sobre a passagem do tempo, o envelhecimento, a mudança, criando uma peça desafiante que não é uma declamação do texto, mas onde ele pode brilhar de uma forma completamente nova. A peça estreia dia 8 de junho, na antiga sala de exposições do espaço dos Artistas Unidos, na Escola da Politécnica e mais do que um objeto teatral procura ser uma experiência “que retira o público da sua zona de conforto”.
Sobre “As Ondas”, a escritora francesa Marguerite Yourcenar, que o traduziu, disse: “(…) é um livro com seis personagens, ou melhor, seis instrumentos musicais, pois consiste unicamente em monólogos interiores, cujas curvas se sucedem e entrecruzam com uma segurança que lembra a Arte da Fuga de Bach. Nesta narrativa musical, os breves pensamentos de infância, as rápidas reflexões sobre os momentos de juventude e de confiante camaradagem desempenham o mesmo papel dos allegri nas sinfonias de Mozart, abrindo espaço para os lentos andantes dos imensos solilóquios sobre a experiência, a solidão e a maturidade. Tanto como uma meditação sobre a vida, As Ondas é um ensaio sobre a solidão (…)”
Se a ideia de música é uma chave que a genial intuição de Yourcenar nos oferece, há também quem tenha chamado a este livro um “poema sinfónico” que trabalha habilmente no coração dos grandes símbolos: a mudança das estações, o dia e a noite, o pão e o vinho, o fogo e o frio, o nascimento e a morte. Mas, sob tudo isto, a ideia da mudança inexorável, a transformação de tudo em pó como dirá/pensará, no final, Bernard. Como escreve o ensaísta americano Louis Kronenberger, “Virginia Woolf transforma tudo o que num romance tradicional seriam fatos em matéria poética”, daí o fluxo ininterrupto de palavras que jorram como lava, e relacionam-se umas com as outras criando imagens, lugares interiores e exteriores, representações da experiência humana completamente novas, únicas e deslumbrantes.
O grupo Meia Volta capta muito bem este movimento constante que estrutura o livro: desde o bater das ondas na praia, ao apodrecimento dos frutos nos bosques em redor, aos pensamentos e sentimentos em constante transformação das personagens, as palavras que procuram captar cada breve mudança na luz ou no mundo interior destas crianças. E fá-lo tornando um imenso cenário verde, despovoado parecer um estúdio de cinema ou uma sala de concertos, onde os microfones fixos e os seus longos fios se movem como ondas. Também os corpos estão em constante movimento, mesmo quando não saem do mesmo lugar. Nada é estático, tudo está a mudar, a passar, a ser consumido, modificado.
“Queremos tirar o público daquele habitual lugar frontal face ao palco. Aqui não há palco. Queríamos dramatizar um texto poético, mas mantê-lo dentro da sua natureza de texto, não de enredo. Uma das características que vimos neste livro é que ele obriga o espectador a sair da sua engrenagem habitual e quisemos trazer essa experiência de inquietação para a peça. Por isso também não queríamos uma sala convencional mas uma sala onde o público possa mover-se”, explicam os atores em conversa com o Observador.
E, se no livro, cada discurso de cada personagem se dirige apenas ao leitor criando com ele uma intimidade, nesta peça os olhos dos atores não se fixam em ninguém, estão virados para dentro vagueiam num espaço interior. Como fantasmas ou anjos (figurinos de Ainhoa Vidal), dir-se-ia que, a qualquer momento, vão levantar voo como os pássaros na rebentação das ondas, e flutuar sem género ou gravidade. Só a sua voz se impõe no espaço, sobretudo pela estranheza que causa ouvir o som do que só conhecemos vindo de um silêncio profundo.
“Trazer a experiência poética para o meio teatral tornou-se um dos nossos objetivos, sobretudo desde que, em 2021, o Coletivo fez quinze anos, e convidámos o poeta André Tecedeiro para escrever para nós uma reflexão sobre a passagem do tempo e os processos de crescimento/envelhecimento, e que deu origem ao espetáculo ‘Joyeux Anniversaire’. ‘As Ondas’ é uma continuação dessa reflexão”, explicam ainda os atores, que fizeram questão de falar em grupo mostrando que não há aqui a figura de um encenador mas que a criação coletiva é uma das traves mestras deste projeto, que merece ser mais conhecido.
As Ondas, um ensaio sobre o dia conseguido
Um momento não nos prepara para o momento seguinte. A porta abre-se e o tigre salta. Não me viram entrar. Fiz mil desvios entre as cadeiras para evitar o horror de um encontro brusco. Tenho medo de vocês. Tenho medo do choque das sensações porque não posso acolhê-las como vocês fazem. Não consigo enfiar uns nos outros os minutos e as horas, de modo a formar essa massa indivisível a que vocês chamam vida. Porque vocês têm um objetivo, uma pessoa ao lado de quem se sentar, ou talvez uma ideia, ou a própria beleza. Não sei. Mas como, acima de tudo, desejo manter as aparências, finjo ter um objetivo. Vim até aqui não para ver um qualquer de vocês, mas para acender o meu fogo no incêndio dos que vivem inteiros e despreocupados.” (pensa Rhoda)
Em cada estado de espírito, em cada humor, em cada pulsão, cada fúria, desejo, esperança ou desespero, estas seis vidas (mais uma sétima, Percival, que é apenas mencionado, mas vai ser determinante para a vidas de todas as outras) sai da cabeça da “poeta imagística”(Kronenberger) que foi/é a senhora Woolf, em palavras que mostram como ela, tal como os poetas simbolistas, percebia e sabia usar a força imagética interior de cada palavra e como essa força imagética da palavra amplia o mundo e nos permite chegar, pela linguagem, a novos lugares do espírito, logo enriquecer a experiência humana a partir daquilo que podemos, aqui sim, chamar Literatura.
Em “As Ondas” não há enredo, nem qualquer interesse da autora em explorar aquilo a que chamamos realidade ou verdade. Aqui tudo é artificio poético erguido sobre aquilo que é a banalidade do romance ou mesmo da biografia: as personagens crescem, brincam, estudam, trabalham, apaixonam-se, casam, envelhecem, mas estão sempre conscientes da sua solidão no universo, dos seus anseios pelo passado, dos arrependimentos, no medo da morte. Como não ler este livro sem voltar ao aforismo de Novalis, (poeta simbolista alemão do século XIX): “Estamos sozinhos com tudo o que amamos”?
“Começo a esquecer, começo a duvidar do aqui e do agora. Vi tantas coisas, pronunciei tantas frases. Por isso pergunto: “Quem sou eu?” Falei de Bernard, de Neville, de Jinny, de Susan, de Rhoda e Louis. Serei acaso todos eles ao mesmo tempo? Serei um ser distinto e único? Não sei. Sentamo-nos aqui juntos. Mas Percival morreu e Rhoda morreu. Dispersamo-nos. Não estamos aqui. Mas apesar disso, não vejo nada que nos separe. Somos a mesma pessoa. Essas diferenças que nos pareciam tão importantes, essa identidade a que concedíamos tanta importância, foi superada. Sim, ainda tenho na fronte o golpe que recebi quando Percival caiu. E na nuca guardo o beijo que Jinny deu em Louis. Os meus olhos enchem-se com as lágrimas de Susan. E ao longe, tremulando como um fio de ouro, vejo a coluna que Rhoda entreviu no deserto. Mas agora tudo terminou.”
Quando se movem pela sala coberta de verde e croma, entre microfones e projetores, estamos fora da realidade superficial do romance tradicional, que Woolf queria deixar para trás, mas também da realidade psicológica. Estamos apenas perante a Natureza na sua manifestação mais dura: a passagem do tempo e o consequente desaparecimento de tudo o que um dia foi vida. Como bailarinos que suportam sobre a exiguidade dos seus pés, um corpo que atinge zonas longínquas do espaço sem cair, estes seis atores, procuram acompanhar os movimentos mentais e retóricos dos seis personagens e, ao mesmo tempo, criar o seu próprio espaço dentro delas, criando espaços de entrelinhas onde o público possa mergulhar no texto e fazer dele uma experiência individual e coletiva de encontro.
“As Ondas”, pela estrutura de produção Meia Volta e Depois à Esquerda Quando eu Disser, adapta a obra de Virgina Woolf, a partir da tradução de Francisco Vale. A criação e interpretação é assinada por Alfredo Martins, Anabela Almeida, Duarte Guimarães, Luís Godinho, Sara Duarte e Tânia Alves. A peça estará em cena no Teatro da Politécnica de 8 a 25 de junho. De terça a sábado, sempre pelas 21 horas.