Nuno Gonçalves, Francisco Henriques, Frei Carlos, Gregório Lopes, Jorge Afonso, Cristóvão de Figueiredo são os grandes pintores do Renascimento que o Museu Nacional de Arte Antiga expõe no Louvre, em Paris, de 10 de junho a 10 de setembro. Três meses para França, a Europa e o mundo descobrirem o que de melhor se fez no nosso país em termos de pintura durante toda a primeira metade do século XVI. Mas é um quadro anónimo, chamado “Inferno”, que coloca no maior museu francês a grande originalidade da arte feita no tempo das Descobertas.
De Lisboa para Paris foram 15 telas de deslumbre realizadas durante os reinados de D. Manuel (1495-1521) e D. João III (1521-1557), são trabalhos feitos no seio da corte, encomendas reais na sua maioria, que retratam uma realidade religiosa mas também de abundância e de perícia artística para a qual jogam em escala intensa as influências culturais chegadas de Itália e da Flandres, da Alemanha também, com apontamentos curiosos de um quotidiano onde as riquezas vindas de fora mostram o diálogo crescente entre a capital portuguesa e as terras da Índia, do Brasil e de África.
Um momento de Ouro para o país e para o Continente que encontra a globalização a nível comercial pela primeira vez através das rotas milionárias dos portugueses, qualquer coisa que o rei, sobretudo, D. Manuel, vai querer exibir como estandarte de uma arte e de uma cultura unas e suas a um mundo já sedento de novidades.
Não é por acaso que a seleção de obras efetuada por Joaquim Caetano, diretor do MNAA, se apoia naquilo que de mais extravagante existe no reino e não só, mas também e obviamente na qualidade dos quadros. É por isso que Cristóvão de Figueiredo lá está com as suas ruas de Lisboa, percursos detalhados e pontuados por caravelas portuguesas, à beira do Convento da Madre de Deus, celebrados por um grupo de músicos negros que existia na corte de D. Manuel, naquele vai e vem das Relíquias de Santa Auta de Colónia e do Casamento de Santa Úrsula com o Príncipe Conan, onde as joias usadas pelos retratados fazem saltar à vista a riqueza de uma corte nova.
Está lá “S. Vicente”, de Nuno Gonçalves, o nosso “grande primitivo”, o padroeiro de Lisboa faz jus à mestria do autor dos célebres Painéis, atualmente em restauro no MNAA, numa das maiores operações de conservação ocorridas em Portugal. Está lá Frei Carlos e o seu “Bom Pastor”, e estão lá outras tantas cenas religiosas, da “Última Ceia”, de Francisco Henriques, à “Virgem e o Menino com Anjos”, de Gregório Lopes, passando pela “Adoração dos Pastores”, de Jorge Afonso.
Incontornável, memorável e raro, surge, porém, o pintor anónimo de “Inferno”, o tal alçapão de pecadores, onde se juntam todos os males do mundo, os demónios todos e os seus amores. Prazeres carnais, pecados mortais, cada personagem deste caldeirão infernal expia o seu comportamento na terra e sofre a pena que merece, diabos metade animais, metade humanos, metade mulheres, metade homens, vindos de aquém e de além mar, mais uma vez, ditam por quantas culturas se mede a cidade de Lisboa. A fazer lembrar até aquelas pequenas figurinhas das famosas “Tentações de Santo Antão”, de Heironymus Bosch, o quadro esteve guardado a sete chaves até meados do século XX por ser considerado demasiado impúdico.
Agora exposto na Sala das Atualidades do Departamento de Pintura do Louvre, no último andar da Ala Richelieu daquele museu, “Inferno”, c. 1510-1520, é a prova mais acabada da mistura de culturas que Portugal protagonizou nos séculos XV e XVI, uma amálgama feita de gentes chegadas de todos os lados, com credos diferentes e pecados iguais. Ontem como hoje.