Às vezes sabe bem ver uma série de uma assentada sem que isso seja uma maratona de esforço. E sabe, particularmente bem, quando nos seis episódios dessa séries se está, enquanto espectador, constantemente a questionar se a ingenuidade é propositada ou se faz parte de um momento. Ao fim dos seis episódios de “A Fragrância da Primeira Flor” torna-se claro que a ingenuidade acompanha um mundo de mudança na sociedade de Taiwan e, por isso, esta série é – no melhor dos sentidos – um objeto do seu tempo, como também um exemplo de como a linguagem dessa mudança encaixa no audiovisual. A série já está disponível na plataforma Filmin.

Seis episódios parece muito? A duração é menor do que o último episódio do primeiro volume da quarta temporada de “Stranger Things”. São episódios curtos, de vinte minutos ou menos, bem montados com a ideia de capítulos e para o que eles servem. A particularidade de “A Fragrância da Primeira Flor” é ser a primeira série de Taiwan a abordarem a legalização do casamento entre pessoas do mesmo sexo, que passou a ser legal em meados de 2019.

Por isso mesmo, a série começa com um casamento. Yi Ming (Zaizai Lin) e Ting Ting (Lyan Cheng) reencontram-se num casamento de dois casais do mesmo sexo, um entre dois homens e outro entre duas mulheres. Yi Ming e Ting Ting têm um passado, foram amantes durante o liceu e, desde então, nunca mais se viram.

O que a série faz brilhantemente no decurso dos seis episódios é mostrar o vazio que ficou entre o passado e o presente, o limbo em que o “eu” ficou por, na altura, não ser socialmente – e legalmente – aceite uma relação entre duas mulheres. O reencontro entre as duas vai além da mera ideia de reacender uma paixão, é uma reconstrução e reencontro das suas personalidades: e o final da série é exímio a demonstrar isso.

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© DR

Nomeada pela Variety como uma das melhores séries internacionais de 2021, “A Fragrância do Primeiro Amor” constrói-se à volta de quatro personagens. As duas já mencionadas, o marido de de Yi Ming (Lee Yi) e o filho de ambos. Este último, serve desde início como um motivo forte para Yi Ming poder vislumbrar um futuro com Ting Ting. Durante a semana, Yi Ming passa os dias sozinhas em Taipei, porque o marido trabalha noutra cidade. É percetível de imediato o cansaço de tomar conta do filho sozinho e, também, o cansaço que lhe causa por ter um parceiro ausente, que parece um inútil quando está por casa.

A presença do filho estabelece de imediato duas coisas, de como o casamento de Yi Ming está longe de ser aquilo que esperava e de como, por consequência disso, ela vê-se progressivamente a afastar-se de si própria. Do seu “eu”, por assim dizer. Com a chegada de Ting Ting há o esperado reacendimento de uma paixão antiga e, à mesma velocidade com que isso acontece, acontece a entrada de Ting Ting na vida de Yi Ming, tornando-se numa cuidadora do filho de Yi Ming, estando presente quando esta não pode estar e disposta para dar uma ajuda quando necessário. Com isto, Ting Ting mostra um outro tipo de relação possível e de que o filho necessita de um outro pilar de referência.

Isto é o presente. Depois o espectador também é levado para o passado e para o egoísmo de Yi Ming quando as duas tiveram uma relação. A procura de Yi Ming por uma vida normal – por medo por uma outra vida – muda por completo a realidade de Ting Ting após o término da sua relação. Em cerca de 3 ou 4 cenas, Angel Ihan Teng, o realizador de “A Fragrância do Primeiro Perfume”, resume com determinação, frontalidade e cuidado uma série de razões que, na maior parte de outras séries do presente, aconteceriam ao longo de vários episódios.

Não é pelo curto e grosso saber bem. É por “A Fragrância do Primeiro Amor” gerir bem as expectativas e recorrer apenas ao necessário para contar uma história de amor num mundo em mudança: não é só o mundo real em mudança, é o próprio mundo ficcional da série que também está a mudar. Isso aproxima o espectador do mundo das personagens, a perceção do amor proibido em tornar-se num amor real. E, também, de como o amor por amor de outro tempo, vira em ideia de família com uma mudança legal na sociedade.

Uma leitura ingénua, verdade. Só que é a leitura que “A Fragrância do Primeiro Amor” quer que tenhamos, pela forma como abraça em si este mundo em mudança e o gere através das expectativas de três personagens (o filho não entra nesta equação). O amor a vencer a ideia do comodismo e do tradicional só porque sim e, também, de como o “eu” fica pendente quando se deixa por resolver situações do passado.

Por isso, a dado momento, não se pensa nas duas personagens femininas como alguém que deixou uma relação pendente necessariamente por causa da lei. Mas como duas pessoas que não conseguiram cumprir a sua felicidade por medo. Medo justificável na altura. E, quando ele deixa de existir, fica tudo mais claro. “A Fragrância do Primeiro Amor” é um bravo exemplo de contenção narrativa e de condensação. Não é pela duração curta, é por fazer contar todos os minutos.