O que se viveu este fim de semana, 18 e 19 de junho, no Parque da Bela Vista, em Lisboa, não foi só o regresso do Rock in Rio. Foi mais um capítulo do regresso dos festivais de verão, do pingue-pongue de concertos, das cervejas saídas de mochilões, das corridas aos brindes e, sobretudo, das festas gigantes onde mais de 70 mil pessoas que não se conhecem são capazes de entoar as mesmas canções e dançar no mesmo ritmo.

“I wanna scream and shout and let it all out. And scream and shout and let it out (Quero gritar e berrar e deitar tudo cá para fora. E gritar e berrar e deitar tudo cá para fora).” O concerto já caminhava para o fim quando will.i.am pôs toda a gente a fazer exatamente o que a canção “Scream & shout”, que gravou com Britney Spears, pedia. De repente, estávamos numa discoteca a céu aberto numa festa coletiva gigantesca — e era exatamente disso que todos precisávamos. De gritar até a garganta doer e saltar sem parar, como se estivéssemos a expulsar todas as frustrações dos últimos anos e a dizer basta aos isolamentos e afastamentos forçados.

Porém, não foi aí que o público acordou. Os Black Eyed Peas agarraram toda a gente desde o momento em que pisaram o palco principal, às 23h07, para fechar o segundo dia do Rock in Rio. “Let’s get it started” deu início a um alinhamento que misturou sucessos do início da banda, temas criados a solo e muitas batidas que foram buscar a outros nomes. “Seven Nation Army”, dos White Stripes, andou por lá, de mãos dadas com “The rythm of the night”, dos Corona, agora reinterpretada em “Ritmo”, e “La Isla bonita”, de Madonna, que o público mais jovem pode descobrir (se não conseguir recordar) em “Mamacita”. “Pump it” trouxe parte de “Misirlou”, de Dick Dale (ou, se quisermos, o tema mais conhecido de “Pulp Fiction”).

Nem quando cada um dos membros dos Black Eyed Peas assumiu o concerto a solo o ritmo abrandou. Taboo disse que não sabia português — apesar de atirar inúmeras vezes um perfeito “muito obrigado” — mas dirigiu-se à Bela Vista em espanhol. E atirou-se a “All I need is your love tonight” para falar das suas origens filipinas e do apoio aos povos indígenas.

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apl.de.ap manteve a cadência com “Mabuti/ rebot” e will.I.am estava contagiado com a loucura do parque. Tanto improvisava, como fazia lives para o Instagram, ao mesmo tempo que declarava o amor e admiração por Britney Spears — e igualmente por Shakira. “This is love” e “#thatPOWER” reafirmaram que era proibido ficar parado naquele mar de gente. Se nos lembramos de Fergie nos repescados sons mais antigos, rapidamente nos esquecemos para voltarmos a pular, a gritar e a deitar tudo cá para fora. J. Rey Soul é a voz feminina que acompanha agora os três músicos e cumpre na perfeição o seu papel, embora ele nunca venha a ser principal.

Chamas em palco? Houve. Shakira e David Guetta em vídeo enquanto os Black Eyed Peas assistiam sentados no chão? Houve. Uma canção nova, “Don’t you worry”, lançada há poucos dias e precisamente feita com Shakira e David Guetta? Houve. Chuva de confetti? Houve. A escolha pouco comum para terminar o alinhamento de “Where Is the love?”, “I gotta feeling”, novamente “Don’t you worry” e “I gotta feeling”. Também houve.

A festa dos Black Eyed Peas — que tinham estado no festival em 2004 e pela última vez em Portugal em 2010 —  durou uma hora e meia. Além do lixo para recolher, as equipas do Rock in Rio tiveram também uma boa dose de desgostos, problemas e gritos de raiva por ali deixados.

Ellie Goulding, uma falsa partida e a recuperação

Ellie Goulding chegou e não impressionou — pelo menos no início. A massa compacta que tinha fincado os pés no chão do parque para, horas antes, ver Ivete Sangalo dissipou-se e chegar perto do palco era muito fácil — demasiado fácil para um nome que antecedia os cabeças de cartaz.

O começo do concerto — que durou uma hora e 20 minutos — foi um desenrolar de temas novos que só diziam alguma coisa a grupos muito pequenos de fãs: “Worry about me”, “Holding on for life”, “How deep”. O resto da Bela Vista passeava pelo recinto, como corpos numa corrente lenta de água. Se Ellie Goulding tivesse chamado a sua antecessora ao palco, talvez não tivessem existido tempos mortos entre canções e ainda aprendia uns passinhos de samba.

Passava cerca de meia hora do início da atuação quando Ellie Goulding se dirigiu ao público. “Vocês estão simplesmente felizes, a dançar e a cantar. Simplesmente vibing.” Bom, na verdade, até aí não havia muito material com o qual vibrar. Ellie Goulding — que esteve no Meo Sudoeste em 2014 — mudou a fórmula a meio, como se tivesse percebido de repente que estava a perder a corrida e a energia começou finalmente a surgir. Os sons desconhecidos deram lugar aos sucessos em cadeia. “Close to me”, “Outside”, “I need your love” chamaram pessoas e o público — que agora já era uma mancha digna — começou a cantar. Ellie Goulding era uma mini-chama no meio do palco gigante. Timbre agudo, cabelos loiros ao vento, vestido amarelo e vermelho a esvoaçar.

“Anything could happen” e “Still falling for you” tiveram direito a interação, com Ellie Goulding a virar o microfone para o público, que colaborava. Tudo de braços no ar, enquanto ela perguntava “vão cantar comigo?”. Seguiu-se “Love me like you do” (mais conhecido por ter feito parte do filme “As Cinquenta Sombras de Grey”, com lanternas dos telemóveis no ar, “Lights” e “Burn”.

O concerto não ficará na memória durante muito tempo. No entanto, há que reconhecer que é muito difícil seguir à mesma velocidade do furacão Ivete Sangalo, sobretudo quando os estilos são tão diferentes.

Ivete, a rainha da Bela Vista

“Lá vem ela, lá vem ela…”, ouvia-se nas colunas por todo o recinto ainda antes de ela aparecer a cintilar de azul da cabeça aos pés. Ela é Ivete Sangalo e Ivete Sangalo é Rock in Rio. Pisou este palco tantas vezes quantas vezes o festival esteve instalado no Parque da Bela Vista — aliás, a matemática até balança para o lado da cantora brasileira, que chegou a atuar uma segunda vez no mesmo ano, em 2016, substituindo Ariana Grande, que cancelou o concerto mesmo em cima do evento. O festival não vive sem Ivete e, mais uma vez, percebeu-se porquê.

Apareceu a tocar tambores, às 19 horas em ponto, com um vigor e energia que duraram a atuação inteira — ou seja, uma hora e três minutos. “Tá solteira, mas não tá sozinha” deu início ao alinhamento. “Eu ‘tava com muita saudade”, gritou Ivete Sangalo logo depois de cumprimentar Portugal e Lisboa. As saudades eram mútuas. O recinto estava completamente cheio, como se de um cabeça de cartaz se tratasse. Só se viam mãos no ar, acenando obedientemente para a esquerda e para a direita. “Ô-ô-ô, ô-ô-ô-ô-ô-ô, ô-ô-ô, alegria, alegria”, ouvia-se na voz da cantora e de milhares de pessoas. “Que felicidade”, exclamava ela.

Ivete foi a banda sonora da alegria no parque. Estranhos tiravam selfies uns com os outros, trocavam abraços e cantavam juntos. “Sorte grande” pôs toda a gente a saltar — se alguém sentiu um ligeiro abalo em Lisboa a essa hora, está aqui a explicação. “Mexe a cabeça”, “Embaraçada no beijo”, “Dançando”, “A galera”, “O doce”, “Céu da boca” — temas míticos misturados com sucessos mais recentes, houve cantigas para todos os gostos, até para recordar a Banda Eva e levantar poeira do chão da Bela Vista, como manda o cliché. Podem passar os maiores nomes pelo Rock in Rio — daqueles que só temos oportunidade de ver uma ou duas vezes na vida — mas há um que dá sempre aquilo que promete e ainda mais uns pozinhos. Ivete Sangalo tem 50 anos e “muita gostosura”, como a própria fez questão de frisar. É um mulherão que enche qualquer palco — e desta vez até trouxe o filho, Marcelo, a tocar com o resto da banda.

“Salve baby”,“Onda poderosa”, “O farol”, Festa”, “Arerê” — ninguém arredou pé e ninguém parou de dançar. “Eu queria ficar aqui até de manhã. A minha vontade era botar um pijama e ficar até de manhã”. Palavra de Ivete.

David Carreira: a paixão adolescente deu o que era suposto

David Carreira é músico para um público adolescente. E era exatamente esse que, às 17 horas, estava instalado junto do palco principal. Suspiros de miúdas apaixonadas, um dueto com o irmão Mickael e até uma aparição em palco da namorada, a atriz Carolina Loureiro.

“Primeira dama”, “BabyBoo”, “És só tu”, “Esta noite” ou “Minha cama” — os temas sobre amor, mais ou menos intensos, mais ou menos previsíveis, deram o mote à atuação. No fim de contas, ele divertiu-se em palco e o público divertiu-se com ele.

Ao segundo dia de Rock in Rio, o objetivo principal não era a coerência do cartaz nem uma epifania criativa em palco. A música foi um pretexto para a festa, para andar na roda gigante, esperar horas por um sofá insuflável, e tirar 50 selfies iguais. O regresso aconteceu tal e qual se previa.