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Olga Roriz e José Saramago: um dueto para uma viagem sem princípio nem fim

Este artigo tem mais de 1 ano

"Deste Mundo e do Outro" marca o regresso da coreógrafa à Companhia Nacional de Bailado, com uma obra que coloca 35 bailarinos a celebrarem com ritmo e fúria o centenário do Nobel da Literatura.

"Deste Mundo e do Outro" é uma opus para 35 bailarinos criada por Olga Roriz
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"Deste Mundo e do Outro" é uma opus para 35 bailarinos criada por Olga Roriz

Graça Bilelo/CNB 2022

"Deste Mundo e do Outro" é uma opus para 35 bailarinos criada por Olga Roriz

Graça Bilelo/CNB 2022

No chão risca-se um território. Marca-se uma fronteira. Tanto pode ser a personagem de A Jangada de Pedra, a traçar as fronteiras da Ibéria, como pode ser a força de gravidade que nos prende à terra contra a qual lutava o padre Bartolomeu de Gusmão de O Memorial do Convento, ou a terra pela qual se combate até à morte de Levantado do Chão. Depois começam a chegar aqueles corpos que rastejam como animais, numa viagem tão lenta quanto asfixiante. Ao longe pancadas ritmadas como chicotes acompanham esta caminhada sem fim. Estamos no território de José Saramago, onde o ceticismo e a esperança, o peso e a leveza, a prisão e a viagem foram transformados em movimento e em imagem por Olga Roriz para criar uma nova obra que não é um livro, mas um bailado. Chama-se “Deste Mundo e do Outro” e é um diálogo entre a coreógrafa portuguesa e o escritor, dançado por 35 bailarinos da Companhia Nacional de Bailado. Estreia-se esta quinta-feira, dia 23 de junho, no Teatro Camões, em Lisboa. O espetáculo está inserido nas comemorações do centenário do escritor.

Quer esteja preso à terra, quer esteja suspenso no ar, quer esteja isolado na sua vida breve, ou faça parte do coletivo, na guerra ou no amor é sempre de um corpo atravessado por várias violências que se fala, ou não estivéssemos nos domínios da arte contemporânea e de dois criadores (Saramago e Roriz) que obsessivamente interrogam o Poder e a forma como este atua sobre os corpos e determina as vidas humanas. E se a história literária de Saramago começa a afirmar-se com Levantado do Chão, um romance sobre a posse da terra, no Alentejo, Olga Roriz estreou-se como coreógrafa, em 1983, no Ballet Gulbenkian, onde era também bailarina principal, com uma obra sobre violência doméstica. Tinha apenas 23 anos e ousava trazer o debate para dentro do ballet, uma arte que muitos julgavam e julgam poder ser apolítica.

A coreógrafa, que regressa à CNB, com a qual já não colaborava há oito anos, disse ao Observador que “Saramago e Gonçalo M. Tavares são os escritores portugueses que mais leu”, sobretudo porque se identifica “com o olhar pessimista e sempre a cair para o negro, mas onde por vezes emerge uma grande esperança no Humano” que encontra nestes escritores. Porém, quis que esta peça fosse “também uma celebração da vida de Saramago”, por isso “contrariando” os seus impulsos não carregou “no lado negro” da obra do escritor.

Depois de oito anos ausente, Olga Roriz volta a criar para a Companhia Nacional de Bailado, uma obra que tem a marca da alegria da coreógrafa por este reencontro

HUGO DAVID

Embora recupere o título de um livro de crónicas que Saramago publicou em 1971, “Deste Mundo e do Outro”, não é um bailado sobre o escritor, nem a sua biografia, mas uma peça “sobre a sua visão do mundo”, que se plasma nas várias obras, personagens, paisagens, ambientes, que vamos encontrar neste espetáculo. “Cada pessoa encontrará aqui um escritor diferente, uma leitura diferente dos seus romances, mas a ideia era mesmo essa: abrir outros caminhos na obra dele”, explica a criadora.

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Ao longo de uma hora e meia, mais que no cosmos de um escritor, sentimos que estamos no coração da força humana:” é a força da comunidade, a força das mulheres, mesmo que elas raramente sejam a personagem principal, têm uma força primordial na obra de Saramago, é a força dos fracos, por fim é a força da vida que contraria a morte”, diz Olga Roriz sobre esta obra na qual se assume “deslumbrada” com a fúria, a juventude, a potência  destes 35 bailarinos, por ver “cada gesto desmultiplicado em tantos corpos”. A sua criação vai de encontro aos desejos do diretor da CNB, Carlos Prado, de ter o máximo de bailarinos a dançar e da vontade da própria de trabalhar com um grupo grande para poder fazer um trabalho diferente do que faz com a sua companhia. “Poder trabalhar com tantos bailarinos é um privilégio enorme, embora isso implique um trabalho de criação completamente diferente do que faço habitualmente. Lembra-me os tempos do Ballet Gulbenkian. Hoje em dia já não há companhias de dança com tanta gente, por isso quis aproveitar ao máximo o facto de ter um grupo grande”, confessa ainda.

De pés descalços ou metidos em botas de trabalho, vestidos com fatos-de-macaco ou semi-nus, em solos, duetos ou em grande grupo, em queda ou em saltos e gritos, estes bailarinos levam-nos em incursões muito abertas na obra do prémio Nobel da Literatura, um escritor e uma Língua que, para muitos deles, são totalmente estranhos. “Com os bailarinos estrangeiros, o que fiz foi pedir para traduzir excertos para inglês, depois conversámos sobre esses textos e, gradualmente, fomos entrando no universo, nas dicotomias, nas ideias que queria explorar, sem nunca perder de vista que estamos a celebrar uma pessoa, uma vida concreta e aquilo que ela nos deu”, explicou a coreógrafa ao Observador, no fim de um ensaio onde havia ainda muitas coisas a corrigir. Depois de fazer o grupo repetir várias vezes alguns movimentos, e sem nunca perder o tom cúmplice e paciente, Roriz diz-lhes algo que havia de agradar a Saramago: “OK, a vida é uma merda, vocês estão cansados, mas esse braço e essa cabeça têm que estar erguidos”.

[veja aqui imagens da preparação do espectáculo “Deste Mundo e do Outro”:]

Saramago/Roriz: dueto para uma viagem sem princípio nem fim

Os mundos de José Saramago vistos por Olga Roriz e dançados pela CNB

No princípio era um corpo que rastejava, de cabeça baixa, vergado por um peso sem fim ou puxado para baixo pela força da terra. Depois ele levantar-se-á do chão. Muitas vezes há-de cair, mas sempre há-de levantar-se, ao longo deste bailado, como se cumprisse as palavras de Saramago sobre o livro Levantado do Chão: “Levantam-se os homens do chão, levantam-se as searas, é no chão que semeamos, é no chão que nascem as árvores e até do chão se pode levantar um livro”. É quando começa a pensar, como indivíduo, que o homem se levanta e começa a lutar contra aquilo que o quer manter esmagado. E, se muitos ainda leem Saramago pelas lentes simplistas de Esquerda/Direita, com este bailado Olga Roriz vem mostrar que é tudo mais complicado e acrescenta outra camada de significado aos livros do Nobel, nomeadamente, quando procura enfatizar a ideia de que somos sobretudo uma “massa de gente sem centro”, porque a maior parte do tempo “cada um luta para seu lado, sozinho”. De fato, quem leu este escritor sabe que ele nunca nos apresenta um amanhã glorioso e, ao longo do tempo, a sua obra foi sendo tentaculada por uma lucidez desencantada, que nenhuma ideologia poderia subscrever.

Olga Roriz capta bem essa nota de desencanto e vai explorá-la bastante numa composição que, não sendo negra, também não é solar. Todo o guarda-roupa é em tons cinza e castanho, apenas com alguns apontamentos de verde-escuro. E o cenário (da autoria de Pedro Santiago Cal) é também ele austero: uma parede branca por onde se projeta o filme de uma paisagem em movimento, que coloca o espectador dentro de um comboio ou de um carro. São os campos do Alentejo, estações de comboios, avenidas de Lisboa, cenários captados por Cristina Piedade, que funcionam como uma extensão da iluminação e do movimento dos bailarinos. Elas são espaços que tanto convocam para a obra de Saramago, como para a sua biografia, como para as suas personagens.

Ao usar este filme de uma paisagem a deslizar, Roriz vai buscar outra ideia constante na obra do Nobel: a Viagem. E, diz, que o faz por achar que a viagem contém uma certa ideia de tempo e da sua passagem. “Uma das coisas de que mais gosto em Saramago é a forma como ele vê o tempo, como o passado está sempre a verter no futuro e o futuro está sempre entrelaçado ao passado”.

Olga Roriz: "Esta peça também é uma celebração da vida no seu quotidiano.Da força de nos levantarmos todos os dias e enfrentarmos as dificuldades, contrariarmos o destino e a força de gravidade que nos puxa para baixo. E depois da luta vem o descanso, o retemperar de forças, porque amanhã tudo recomeça"

Graça Bilelo/CNB 2022

A imagem corre sempre da esquerda para direita enquanto os bailarinos se movem sempre da direita para esquerda. A paisagem corre num caudal imparável, e os bailarinos movem-se a contrapelo tal como a vida humana corre contra a passagem do tempo. Só o amor faz o tempo parar numa espécie de sem tempo. Por isso, a imagem só pára nas margens de um lago ou lagoa para nos deixar ver um dueto, que nos remete para os amores de Baltazar e Blimunda, de O Memorial do Convento, e é um dos momentos mais tocantes, desta peça.

Embora não sejam heroínas óbvias, as mulheres são, na obra deste escritor, aquelas que veem mais longe, como Blimunda, que vê por dentro dos corpos ou a mulher do médico de O Ensaio Sobre a Cegueira, que é a única a ver num mundo de cegos. Em várias outras obras elas vão aparecer sobretudo como uma força disruptiva, como que vinda do princípio do mundo. É também desta forma, como um corpo em luta perpétua, que Olga Roriz vai falar delas, criando vários quadros integralmente dançados por bailarinas, em ritmo lento ou frenético, animalescas como formigas ou poderosas como bacantes.

A viagem sem começo nem fim que é “Deste Mundo e do Outro” termina de forma ambígua, com os 35 bailarinos a dançarem como um grande corpo coletivo, cheio de ímpeto revolucionário, mas que aos poucos se converte em muitos corpos individuais que apenas dançam. Dançam felizes, mas dançam sozinhos. Porque, diz-nos Olga Roriz, “esta peça também é uma celebração da vida no seu quotidiano.Da força de nos levantarmos todos os dias e enfrentarmos as dificuldades, contrariarmos o destino e a força de gravidade que nos puxa para baixo. E depois da luta vem o descanso, o retemperar de forças, porque amanhã tudo recomeça.”

“Deste Mundo e Do Outro” estreia-se dia 23, no Teatro Camões, em Lisboa, às 20 horas e fica até dia 26. Na quinta e sexta-feira o espetáculo começa às 20 horas. No sábado às 18h30 e domingo às 16 horas.

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