A história da repressão, da luta e das conquistas pela diversidade de género e sexual durante a ditadura e após o 25 de Abril é contada numa exposição patente a partir desta terça-feira no Museu do Aljube, em Lisboa.

“Apresentei, no âmbito da programação das exposições temporárias, três grandes temas: um sobre as questões das mulheres e da resistência, outro sobre as questões coloniais e pós-coloniais e outro sobre questões de género e LGBT. Esta é terceira tendo em conta o projeto que apresentei”, explicou à Lusa Rita Rato, diretora do museu e curadora da exposição, juntamente com Joana Alves.

A exposição “Adeus Pátria e Família” é inaugurada esta terça-feira, uma data escolhida para coincidir com o Dia internacional do Orgulho LGBT, e vai estar patente até 29 de janeiro de 2023.

Através desta exposição, procura-se mostrar como a tensão entre a repressão e as resistências de diversidade sexual e de género, ao longo dos anos, condicionou a vida quotidiana e perpetuou práticas e discursos opressivos e discriminatórios, marcando a sociedade portuguesa até à atualidade.

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“Quando comecei a pensar nesta exposição, falei com a Joana Alves e com o Ricardo Carvalho, que fez o desenho de exposição, e começámos a explorar a forma como íamos comunicar as questões de resistências de diversidade sexual e de género durante a ditadura, e percebemos que tínhamos de o fazer até aos dias de hoje”, disse.

No ano em que se celebra pela primeira vez na história portuguesa mais dias vividos em liberdade do que em ditadura, celebra-se também os 40 anos de descriminalização da homossexualidade e quatro anos desde a consagração legal da autodeterminação de género, afirmam as curadoras.

No entanto, sublinham a importância de ter sempre presente as conquistas e perpetuar a luta, não só porque o preconceito continua a existir, mas também porque nenhuma conquista deve ser dada como garantida, há sempre o risco de um passo atrás.

O desenho de exposição de Ricardo Carvalho procura sublinhar essa fragilidade: foi criado um percurso em espiral entre telas brancas translúcidas, numa alusão à relação entre a opacidade e a visibilidade da comunidade LGBT na sociedade portuguesa.

Joana Alves explicou, exemplificando, que por detrás das telas é percetível a presença de um vulto, mas não se vê quem é, uma figura que não se revela completamente, ou seja “desenha-se uma visibilidade feita de invisibilidade”.

Nestas telas que funcionam como as paredes do corredor em espiral estão afixados por ordem cronológica diversos documentos que ajudam a contar esta história, desde recortes de jornais, a legislação da época, passando por fotografias, textos censurados, mapas ou dados estatísticos.

Quando chega ao final da exposição, o visitante tem de voltar para trás pelo mesmo caminho, num convite a rever toda a história para trás, sublinha Rita Rato.

O ponto de partida é “A lição de Salazar”, um poster de propaganda do Estado Novo, no qual se vê um homem a voltar do trabalho, a mulher nas tarefas domésticas, o filho com a farda da mocidade portuguesa e a filha a brincar de dona de casa.

Neste poster de propaganda, assim como em cópias de livros da primeira e segunda classes, estão muito diferenciadas as tarefas de menina e menino, destaca Joana Alves.

A acompanhar estas imagens, expõe-se o excerto de um discurso que António de Oliveira Salazar proferiu em Braga, em 1936, onde se lê: “Às almas dilaceradas pela dúvida e o negativismo do século procurámos restituir o conforto das grandes certezas. Não discutimos Deus e a virtude; Não discutimos a Pátria e sua História; Não discutimos a autoridade e o seu prestígio; Não discutimos a família e a sua moral; Não discutimos a glória do trabalho e o seu dever”.

“Então, não discutir a família é não admitir outros modelos para além daquele que consta da propaganda e sobretudo criar uma norma, um modelo”, acrescentou Rita Rato.

O núcleo seguinte mostra, de um lado, a repressão e, do outro, a resistência, “porque uma coisa não existe sem a outra” diz Joana Alves.

Há documentos que revelam o enquadramento jurídico e legal da repressão de todos os que não se enquadravam na norma, e que eram “considerados transgressores”, e há uma nota de inspeção dos espetáculos, ao espetáculo “O Bailarino”, de Bernardo Santareno, sobre o qual se escreve que o protagonista “hesita entre o amor normal, pela bailarina, e o amor contranatura”.

Num texto de enquadramento da exposição, a investigadora Raquel Afonso, que fez a revisão cientifica da mostra, constata que, “durante o Estado Novo, e apesar da repressão a que estavam sujeitas, estas pessoas engendraram formas de resistência à heteronormatividade, de forma a poderem viver a sua sexualidade. Estas práticas caracterizavam-se pela ocultação e dissimulação”.

Alguns exemplos de pessoas que sofreram devido à sua orientação sexual são apresentados, sob o tema “poetas de Sodoma”, como é o caso de Judith Teixeira, António Botto e Raul Leal, cujos livros “Decadência”, “Canções” e “Sodoma Divinizada”, respetivamente, foram apreendidos e mandados queimar pelo Governo Civil de Lisboa, em 1923.

Essa queima de livros é aplaudida por Marcello Caetano, na altura estudante, num texto exposto, escrito para a revista Ordem Nova, com o título “Arte sem moral nenhuma”.

O núcleo “Antes de ser orgulho foi revolta” aborda o contexto internacional, mostrando documentos vários que testemunham os acontecimentos de 28 de junho de 1969, em Nova Iorque, que ficaram conhecidos como os motins de Stonewall, encabeçados pelas mulheres trans Sylvia Rivera e Marsha P. Johnson, contra a violência policial sobre pessoas LGBT.

Em Portugal, a jornalista Virgínia Quaresma, o dirigente do Partido Comunista Português Júlio de Melo Fogaça, o bailarino Valentim de Barros, o poeta e pintor Mário Cesariny de Vasconcelos e a encenadora e dramaturga Luzia Maria Martins são algumas das personalidades que foram perseguidas, vigiadas, julgadas, presas e torturadas por conta da sua orientação sexual, e que são também apresentadas na exposição.

O núcleo “25 de Abril 1974, e agora?” mostra como a Revolução dos Cravos “derrubou um regime, mas não a sua herança cultural”, ou seja, o fim da ditadura não trouxe o fim da repressão contra a comunidade LGBT, dizem as curadoras.

Várias fotografias e artigos jornalísticos de arquivo dão conta dos movimentos que se faziam sentir na altura, desde movimentos em defesa das minorias sexuais e da libertação da mulher, até à afirmação dos travestis e dos espetáculos com ‘drag queens’, no Finalmente Club, fundado em 1976.

Mas é também do pós 25 de Abril um comunicado publicado no Diário de Lisboa pelo general da Junta de Salvação Nacional Galvão de Melo, sob o título “Estejam atentos mas tranquilos”, em que ataca um manifesto de um dos primeiros grupos militantes LGBT (Movimento de Ação Homossexual Revolucionária), intitulado “Liberdade para as minorias sexuais”, que fora publicado dias antes no mesmo jornal.

“Galvão de Melo diz que o 25 de Abril não foi feito para os homossexuais e chega a dizer que a liberdade dada não está a ser respeitada e bem utilizada”, sublinha Joana Alves.

A curadora assinala, portanto, que “a promessa de um país livre para todos não foi concretizada, ou está a ser concretizada ainda, mas para as pessoas LGBT a homossexualidade só deixa de ser criminalizada em 1982”.

É desse ano o aparecimento de António Variações, com o seu single de estreia, e o seu percurso é recordado na exposição, que dedica também uma parte ao VIH-Sida e à forma como a doença contribuiu para a tomada de consciência dos movimentos LGBT, surgidos já nos anos 1990.

A morte da transexual Gisberta, assassinada no Porto, a conquista dos direitos de casamento, união de facto e adoção por parte de casais do mesmo sexo, e da autodeterminação de género, o surgimento das primeiras marchas gays e do primeiro arraial pride, são outros temas abordados nesta fase da exposição.

A terminar o percurso, o núcleo “o que vem depois da esperança” debruça-se sobre representações artísticas em Portugal, desde o Teatro Praga e a dramaturga Cristina Carvalhal, aos realizadores Cláudia Varejão e João Pedro Rodrigues, passando pela cena musical atual, com Conan Osíris e Fado Bicha.

A fechar a exposição, há um conjunto de dados estatísticos atuais sobre a discriminação ainda existente e um mapa que mostra as leis sobre esta matéria no mundo, revelando que existem ainda muitos países onde a criminalização da homossexualidade chega à prisão perpétua ou à pena de morte.