O coordenador nacional das políticas de saúde mental defende que os cuidados primários precisavam do dobro do numero de psicólogos que atualmente têm para garantir, como noutros países, profissionais a tempo inteiro.

“Nós precisávamos de ter um número, nos cuidados primários, que fosse pelo menos o dobro. E porquê? Para garantir que poderia haver psicólogos a tempo inteiro, tal como existem nos outros países, porque é isso que está baseado em evidência, a fazer este tipo de abordagem, de programas de ‘stepcare’ de depressão e ansiedade”, afirmou em entrevista à Lusa.

Miguel Xavier lembra que os psicólogos nos cuidados de saúde primários “têm de responder às múltiplas necessidades e têm dificuldade, como é óbvio, em centrar-se num tipo de trabalho”.

O coordenador defende que “deveria haver uma força de trabalho exclusiva para os programas de abordagem da doença mental comum nos cuidados primários, tal como fez Inglaterra, como fez a Austrália e como estão vários países a começar”.

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“Não é algo que se faça de um momento para o outro, mas é algo que nós temos de começar a fazer. Para isso precisamos ter lá as pessoas”, afirmou.

Sublinha que é preciso psicólogos “num número muito razoável” para dar resposta às pessoas com quadros de possível depressão e ansiedade: “Não nos bastam 20, ou 30, ou 40, ou 50 psicólogos”.

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“Temos de ter muito mais gente a trabalhar articulada com os cuidados de saúde primários. E isto vai ter de ser uma aposta para o futuro. Das duas uma: ou nós queremos ter os cuidados nos cuidados primários prestados ou não queremos. (…) Não podemos ter as duas coisas, ter os cuidados prestados e fazer poupanças a este nível”, insiste.

Miguel Xavier enaltece o trabalho dos centros de saúde, destacando: “Grande parte do impacto da saúde mental relacionado com a Covid não foi na doença mental grave, mas na doença mental chamada comum”. E aí, prossegue, “o colchão de amortecimento é nos cuidados primários. E houve um trabalho muito importante feito”.

“Se me pergunta se os cuidados de saúde primários estavam totalmente preparados para isso, não. Porque falta lá toda a vertente de apoio psicológico”, afirma, considerando que o país tem de ter respostas não farmacológicas nos cuidados primários.

“Temos de passar o nosso orçamento para o dobro dentro de alguns anos”

Miguel Xavier defende ainda que o investimento nesta área no Serviço Nacional de Saúde, que hoje ronda os 5%, deveria duplicar dentro de alguns anos.

“Nós calculamos, sem ter a certeza, porque que não há nenhuma certeza, que o nosso investimento em relação ao ‘budget’ total do Serviço Nacional de Saúde, está à volta dos 5%. Eu considero que nós temos de chegar, em algum momento do nosso futuro, ao dobro disso“, afirmou em entrevista à Lusa.

Miguel Xavier dá o exemplo de países como o Reino Unido, ou os países nórdicos, onde o investimento em saúde mental no peso total da saúde ronda os 13% e 14%, explicando que este valor não surge por acaso.

“É porque essa é a percentagem do peso global da saúde mental nas doenças todas (…) O Reino Unido já foi o primeiro país do mundo a chegar lá, outros vão lá chegar”, disse Miguel Xavier.

Reconhece que é preciso “ser realista e ter os pés na terra” e afirma: “Se nós estivermos nos 4% ou 5%, estamos a falar do triplo”.

Contudo, diz que é um aspeto positivo o facto de neste momento a saúde mental ser considerada “uma prioridade de uma forma transversal à sociedade portuguesa”.

“Se pensarmos que temos de passar o nosso orçamento para o dobro dentro de alguns anos, acho que é uma meta e espero que não seja demasiado otimista”, afirmou, sublinhando: “É uma meta que os portugueses merecem. E já agora também os profissionais [de saúde], que lá trabalham, e trabalham muito”, sublinhou.

Boa saúde mental só com políticas de trabalho, apoio social e educação

Miguel Xavier considera que um dos maiores desafios nesta área são os recursos humanos, mas destaca que os resultados só se conseguem com medidas ligadas ao trabalho, apoio social e educação.

“Nós, sem recursos humanos, não podemos ir mais longe. E recursos humanos treinados (…) Apenas bons serviços de saúde mental não garantem a boa saúde mental”, disse Miguel Xavier, em entrevista à Lusa, realçando que “são uma parte importante, mas de modo algum garantem isso” e a importância de determinantes como as condições socioeconómicas.

O responsável diz que colocar “todos os ovos” no cesto dos recursos humanos é um mau caminho, insistindo: “O problema da saúde mental é muito mais transversal e decide-se antes, não quando as pessoas estão doentes”. “Decide-se através de políticas que vão para além da saúde e são fundamentalmente políticas que têm que ver com o trabalho, com o apoio social e com a educação. Em suma, tem que ver com aquilo que são as condições económicas e financeiras de um país”, considerou.

Sublinha que os determinantes de natureza económica e social têm um enorme peso na saúde mental e que um país que apenas invista em cuidados de saúde não vai ter boas respostas.

E dá o exemplo dos Estados Unidos: “São um país que investe maciçamente em serviços de saúde (…) No entanto, os níveis de desigualdade, como nós conhecemos, são enormes, são os maiores do mundo. E quando se vão ver os indicadores de saúde mental e outros de saúde, verificamos que, em vez de terem indicadores parecidos com os que existem mesmo na Europa Ocidental, têm indicadores piores do que alguns países do terceiro mundo”.

“Os problemas de saúde mental previnem-se antes de aparecerem. Através de bons programas de parentalidade, bons programas sociais, como os programas de apoio em relação às populações vulneráveis. Se nós estamos à espera que as pessoas adoeçam para depois querermos todos muitos serviços, com muita gente a trabalhar e com milhares de profissionais, não vamos lá”, afirma ainda.

Quanto ao impacto da pandemia de Covid-19 nos serviços de saúde mental, Miguel Xavier observa que os serviços de psiquiatria e saúde mental de adultos e da infância da adolescência tiveram de se adaptar e considera que “se adaptaram bem”.

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“Em primeiro lugar, porque conseguiram reter o espaço, ou seja, nós na altura em que começou [a pandemia], em 2020, uma das nossas preocupações era que o nosso espaço não tivesse uma invasão. Porque, enquanto entre serviços médicos e cirúrgicos a transferência de doentes, apesar de ser difícil, e foi muito difícil, mas os doentes têm mais similitude, fazer uma transferência de indivíduos em fase aguda de doença mental para outro serviço é muito complicado”, exemplificou.

Recorda ainda que, “ao contrário da maior parte dos países da Europa”, Portugal conseguiu que “as unidades de internamento se mantivessem apenas com doentes da área da psiquiatria” e não interrompeu os cuidados, sobretudo nas perturbações mentais graves.

“E isso foi tão levado a cabo que a psiquiatria de adultos e da infância e adolescência foram as únicas duas especialidades médicas, de toda a medicina, que, durante o confinamento, aumentaram as consultas, enquanto nós assistimos, na maior parte das especialidades, a uma diminuição”, acrescentou.

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Diz ainda que o impacto da pandemia na saúde mental aconteceu mais ao nível das situações de depressão e ansiedade, e não tanto em casos de doença mental grave: “Nós podíamos estar numa situação em que o número de recidivas e de reinternamentos na doença mental grave tivesse aumentado imenso e não aumentou”.