“Qualquer coisa vai muito mal no mundo.” 

É difícil não concordar com a primeira frase do último livro de John Freeman. De facto, qualquer coisa vai muito mal no mundo. Mas, à medida que se avança na leitura de Dicionário da Erosão, percebemos que o mundo a que o escritor e crítico se refere não é o do novo coronavírus ou da guerra na Ucrânia — é o mundo do cidadão norte-americano nos anos conturbados do governo de Donald Trump, que deixaram uma ferida aberta na paisagem social e política do país. O leitor português e europeu rapidamente perde o entusiasmo inicial. O livro não é, afinal, sobre o presente, mas sobre o passado e uma realidade tão específica que é preciso tê-la em conta para compreender o que Freeman escreveu. Não que isso tire valor ao esforço do autor — Dicionário da Erosão tem uma mensagem poderosa e otimista que contraria a negatividade e apatia que tanta vezes dominam a sociedade. O convite que Freeman deixa ao leitor é precisamente no sentido de combater essa apatia, juntando a sua voz à de outros que também sonham com um mundo melhor: “Faz perguntas. Abre a porta que vem atrás de ti. Risca o fósforo”.

Na opinião de Freeman, para que isso seja possível, é necessário dotar as palavras do seu valor. É por isso que o seu livro segue a estrutura de um “dicionário”, ou melhor, de uma enciclopédia, com cada capítulo a corresponder a uma palavra (Corpo, Cidadão, Decência, Justiça, etc.) que serve de mote a um pequeno ensaio. Nestes textos, de quatro ou cinco páginas, organizados alfabeticamente (segundo o inglês original), o autor explora o significado social dos vocábulos escolhidos, ao mesmo tempo que denuncia certos males e preconceitos e sugere pequenas mudanças que, se repercutidas, podem fazer diferença. São muitas vezes gestos simples, como comer menos carne, pensar naquilo que se compra e onde se compra ou fazer perguntas. Freeman defende-os com grande perspicácia argumentativa: “As nossas vidas são do tamanho das perguntas que fazemos”, afirma, comentando que “nalguns momentos, as perguntas certas podem inspirar uma história não contada”. O ato de questionar pode ser o início de uma mudança maior: “Quando fazemos perguntas, as estruturas do mundo assumem uma tonalidade muito diferente”.

Título: Dicionário da Erosão
Autor: John Freeman
Tradutor: Isabel Castro Silva
Editora: Tinta-da-China
Páginas: 152
Preço: 16,90€

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Em Dicionário da Erosão, o escritor sugere que a linguagem é corruptível e que o sentido original e puro das palavras pode ser adulterado para servir os fins da elite política. “Em tempos de tirania, os governos lançam-se sobre as palavras e tentam quebrá-las para que não possamos pegar na poderosa energia que emerge no campo da esperança e transferi-las uns para os outros. (…) E depois, quando as palavras já foram estilhaçadas e pulverizadas, quando já estão tão débeis que mal se ouve o sentido a percorrê-las, aqueles que estão no poder desafiam-nos a usá-las de novo. Poderemos dizer que certa coisa é verdadeira depois de alguém no poder ter asseverado tantas falsidades?”, questiona o autor.

A ideia não é nova. George Steiner, em “A retirada das palavras” (1961) e ensaios posteriores, defendeu que a linguagem tinha perdido a sua autoridade e entrado num processo de declínio após ter sido contaminada pelas mentiras disseminadas pelos nazis durante a Segunda Guerra Mundial. Ao ser usada para “dizer o indizível”, a linguagem tinha-se tornado pouco confiável — tinha perdido a sua humanidade. Para o autor e crítico norte-americano, isso fez surgir a necessidade de encontrar formas alternativas de comunicação não-verbais, o que explicava a “crise” que a linguagem “atravessava”, um tópico recorrente nos anos 60. Freeman, por outro lado, acredita que a solução não está nas mãos dos especialistas, mas nas dos cidadãos, aos quais cabe “vigiar os abusos à linguagem que acontecem diante dos nossos olhos e ouvidos”. É necessário “reparar neles, partilhar essa informação e resistir aos assédios de maneira a conseguirmos manter um clima que, apesar de tudo, permita a transferência da esperança”.

Por “partilhar essa informação” o crítico quer dizer prestar testemunho. Testemunhar é, por si só, um ato de resistência, que, ao ser realizado, “cria um coletivo no qual a linguagem pode existir e cria um campo de esperança. Muitas vezes em condições que parecem tornar a esperança impossível”. Porque, na opinião de Freeman, a resistência não é um ato isolado, mas coletivo — só pode acontecer quando um grupo de pessoas com os mesmos princípios, medos e anseios se reúne para “trocar palavras com significados sobre os quais estão de acordo”. O escritor e crítico norte-americano prefere a troca presencial de palavras (a presença física é, para ele, fundamental), mas não exclui totalmente o uso da internet enquanto ferramenta de comunicação, apesar das muitas críticas que faz ao online, alertando, por exemplo, que “a Internet pode agravar o estrago feito pela tirania; uma vez que a Internet não é uma coleção de corpos, a ética por que se rege pode carambolar para longe da decência”.

A “tirania nacionalizada” é um conceito que atravessa todo o Dicionário da Erosão. Freeman parece incapaz de conceber um governo que não tenha como objetivo final o de dominar os seus cidadãos, o que pode parecer um exagero para o leitor europeu, mas uma grande verdade para o norte-americano, que tem uma conceção diferente de Estado. Por isso, apela à necessidade de manter a vigilância e resistir. A imagem que pinta da sociedade norte-americana no tempo de Donald Trump não é bonita, mas está carregada de esperança e da possibilidade de um mundo mais igualitário e solidário, onde as pessoas não olham apenas para o seu umbigo e se preocupam com o vizinho, o colega, o amigo. O desânimo do autor é apenas em relação a quem governa e não em relação a quem e governado. Ao contrário do Steiner mais pessimista, dos anos 60, Freeman acredita que é possível reverter a situação atual. “Para isso, precisamos que a linguagem crie e mantenha uma realidade que parta das pessoas e suba, não uma realidade que parta do governo e desça.” É nas mãos dos cidadãos comuns que está o poder de realizar a mudança. Dicionário da Erosão é um apelo a isso mesmo.