Era uma premissa que prometia não falhar e Javier Cercas cumpriu-a e não falhou. Depois de, em 2019, o autor ter recebido o prémio Planeta com Terra Alta, chega-nos agora com Independência, que aparece com o subtítulo “Terra Alta II”. Aqui, temos a segunda parte das aventuras de Melchior Marín, algures na contemporaneidade.

O romance, convém dizer, entrelaça vários pontos e lê-se em forma de vertigem. Cercas não perde tempo com pó, tudo no que faz é funcional, tudo o que dá é escorreito. E o cerne da narrativa, para além de prender o leitor ao livro, também lhe permite tecer braços que acabam por compor um todo orgânico. No romance, Melchor Marín volta a Barcelona para investigar um caso: a presidência da Câmara está a ser chantageada com a divulgação de um vídeo sexual. Inicialmente, os chantagistas pedem 300 mil euros em troca do vídeo. Num segundo aviso, pedem mais dinheiro e exigem a demissão da autarca.

A partir daqui, inicia-se a empreitada em que o investigador tenta desmontar a extorsão e perceber os seus propósitos. Pelo caminho, o romance extravasa as características de policial, já que as estruturas do poder começam a ser desmontadas e os meandros da corrupção começam a ser enfrentados. Mais do que no caso, os olhos estão em tudo o que há à volta.


Título:
Independência
Autor: Javier Cercas
Editora: Porto Editora
Páginas: 328

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As personagens são densas e fortes, começando logo pela presidente da Câmara. Ainda que vítima neste caso, também aparece como algoz, já que Cercas não quis fazer um romance a preto e branco. Assim, eleita, é o resultado de estratégias populistas, tendo enveredado pelo conservadorismo como forma de arrecadar votos, contrariando toda a sua visão política prévia, sendo esta provavelmente também populista. Depois de ter pregado o amor livre e se ter gabado das suas experiências homossexuais, “passou a pregar a castidade, o regresso à família tradicional e a necessidade de mais filhos para preservar a civilização cristã, para que os muçulmanos não nos invadam e toda essa merda xenófoba” (p. 129). Com isto, vai-se vendo a disputa eleitoral como desprovida de moral ou ideologia ou convicção, sendo antes um produto para consumo rápido e aprovação imediata, ainda que o que lhe interesse seja mesmo dar lições de moral:

Esta mulher fez da sua vida um argumento político. Antes dava lições de moral esquerdista, agora, de moral direitista. O que interessa é dar lições de moral.” (p. 129)

A acção vai sendo rápida, tudo é conteúdo, e para isso muito contribuiu a estratégia usada pelo autor, que, ao invés de se fixar apenas no que falta resolver e descobrir, vai pejando a narrativa de longos diálogos, testemunhos que compõem a narrativa, elementos bem alinhados da composição política e económica local, e um interrogatório em que se vai dando informação operante sobre o caso da extorsão, e que por sua vez está já entrelaçado com os meandros de poder e a sensação de impunidade que estes trazem. Assim, se a premissa do romance era boa, a execução é que foi fulcral, já que foi a exploração bem doseada de recursos que permitiu que o romance funcionasse.

O romance mantém-se sempre em tom de thriller e todos os elementos existem para concatenar a história. Ao invés de girar apenas em torno do episódio da chantagem, o romance vai-se pautando por outros elementos que marcam o tempo da acção e que tanto se prendem com a situação dos imigrantes em Espanha como com o tráfico humano. Um dos outros pontos altos do romance será, embora este já se prenda com a história da extorsão, a forma como um grupo de rapazes jovens, protegidos pelo estatuto social que o dinheiro de família lhes confere, droga, viola mulheres em grupo e deixa o registo em vídeo dessas violações.

De interesse serão ainda as frequentes referências a Terra Alta, protagonizado também por Melchor, que afirma não ter lido o livro, embora distraiam o leitor da história ao fazê-lo entrar num jogo meta-ficcional. Ainda assim, Independência marca-se pela forma como resulta enquanto thriller político: o suspense, ao invés de viver só pelo mistério, vive também pela realidade.

A autora escreve segundo a antiga ortografia