Não sei se foi influência esmagadora de Dickens na cultura britânica, ou se era antes já a esmagadora influência da cultura em Dickens, mas há algo dickensiano em quase todas as histórias britânicas. Isto é, não há histórias miserabilistas como as britânicas. Querem música triste? Venham a Portugal. Querem uma história deprimente? Reino Unido. Um extraterrestre que fizesse video on demand de alguma BBC lá a partir da terra dele, nunca acreditaria que estamos a falar da produção cultural de uma das nações mais ricas, desenvolvidas, industrializadas, com melhor educação e maior rendimento per capita da História.

Ou, então, é o clima. O clima que não entra, misteriosamente, com a música (como se consegue fazer pop tão boa e alegre, com um tempo tão depressivo, é dos enigmas mais insondáveis da civilização), mas que entra com a ficção. Não é que não contem grandes histórias, atenção; é só que, se descontarmos todos os alcoólicos, desempregados e deprimidos disfuncionais da ficção britânica, não se percebe muito bem como é que o país que retratam ainda não chegou ao índice de desenvolvimento humano de, digamos, um Burundi.

“In My Skin” é mais uma dessas histórias onde, depois de nos cobrirem de doença mental, desemprego, pobreza, alcoolismo, bullying e abuso sexual, nos convidam para a salvação. E, de facto, ninguém faz isto como a BBC.

[o trailer de “In My Skin”:]

“Coming of age” magnificamente filmado por Lucy Forbes (“The End of the F***ing World”), “In my Skin” segue a jovem Bethan Gwyndaff (Gabrielle Creevy) nas duras batalhas da adolescência: pela popularidade, pela aceitação, pela descoberta de quem se é ou quer ser. Em casa, tem uma mãe bipolar (Jo Hartley, a June de “After Life”) e um pai agressivo e alcoólico (Rhodri Mellir), tudo o que esconde dentro dela mesma, maquilhado com mentiras, inteligência e humor, dos amigos da escola: Lydia (Poppy Lee Friar), Travis (James Wilbraham) e, agora, sobretudo de Poppy (Zadeiah Campbell-Davies), a miúda popular que quer ser a melhor amiga de Bethan obviamente por razões insinceras. Sobram o bully de serviço (Aled ap Steffan), a avó, tábua de salvação familiar (Di Botcher), uma professora lésbica (Laura Checkley) que parece ter ido ali parar acidentalmente saída de um sketch de Ricky Gervais.

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Muitas personagens não passam de arquétipos funcionais ao serviço da parábola da adolescente em apuros, mas talvez outra profundidade não seja possível ao serviço de uma outra arte que os storytellers britânicos parecem dominar como ninguém: o arco dramático de meia hora (o habitual, estabelecido pela indústria americana, é a hora para o drama, meia hora para o humor). E em todo o caso, o que importa em “In My Skin” é Bethan e nada mais. Com os seus pensamentos, sonhos, versões alternativas da realidade, impulsos poéticos, questionamento sexual. E essa entregue de forma magnífica por Gabrielle Creevy que, como aventado pelos professores à personagem, tem obviamente um futuro brilhante à espera, desde que não se estrague.

Inicialmente projectado para ser apenas uma curta-metragem para a sucursal de Gales, “In My Skin” chamou à atenção dos responsáveis da BBC-mãe, que pediram a Kayleigh Llewellyn para transformar aquele pequeno filme rodado em cinco dias no piloto de uma temporada de cinco episódios (aprendemos recentemente, na ida de Stephen Merchant – “The Office”, “Extras” – ao podcast de Conan O’Brien, que este gosto inglês pelas séries curtas não tem nada a ver com integridade artística; apenas com falta de dinheiro. Se calhar, Dickens sempre tinha alguma razão). E Llewellyn, ela própria com um historial de dificuldades financeiras e problemas familiares para contar, assim o fez, sozinha, e não com “uma equipa de grandes escritoras de séries britânicas, lideradas por Michaela Coel e Phoebe Waller-Bridge”, como o texto promocional da Filmin parece, supõe-se que involuntariamente, sugerir.

Vencedora de dois BAFTA, “In My Skin” tem a segunda e última temporada disponível a partir de dia 12. É ver, antes que venha a vida adulta.