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Rua Direita: um festival açoriano entre cafés, latas de tinta, mercearias a granel e fantasmas

Este artigo tem mais de 1 ano

A ideia não será nova, mas rejuvenesce sempre: tirar a cultura das salas e lançá-la nas ruas, onde nasceu e a que pertence. Verdadeiro serviço público num festival na ilha Terceira.

Cinco espectáculos de 10 a 15 minutos a acontecerem todos à mesma hora, sete vezes por dia, mais duas instalações e um espectáculo final, nas varandas da rua. Entre cafés, lojas, esquinas e um posto de turismo
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Cinco espectáculos de 10 a 15 minutos a acontecerem todos à mesma hora, sete vezes por dia, mais duas instalações e um espectáculo final, nas varandas da rua. Entre cafés, lojas, esquinas e um posto de turismo

Hugo Silva

Cinco espectáculos de 10 a 15 minutos a acontecerem todos à mesma hora, sete vezes por dia, mais duas instalações e um espectáculo final, nas varandas da rua. Entre cafés, lojas, esquinas e um posto de turismo

Hugo Silva

Um violinista inglês toca uma canção triste ao lado da estátua de Vasco da Gama, photo opportunity habitual para quem visita Angra. Instantes antes, os sinos da Igreja da Misericórdia dando a meia hora tinham-se substituído a quaisquer pancadas de Molière, fazendo com que tudo o que acontece depois tanto possa ser espectáculo como realidade (em todo o caso, ambos serão sempre a soma de um e outro, o que é inevitavelmente mais interessante). As silhuetas que vão surgindo atrás, nas Portas do Mar, parecem subir a cena, preparadas para tomar parte na atuação, antes de percebermos que são apenas banhistas a vir da Prainha. Uma menina-fantasma entra carregando um grande barco de papel, feito com o correio do Atlântico Norte, e distribui um poema:

“O oceano dura sempre, e as ondas sem fim
sussurram nas areias:
não te esqueças,
não te esqueças / não te esqueças”

Um rapper junta-se com alma e raiva, disparando versos do outro lado da colonização que a estátua de Vasco da Gama não pode ouvir nem compreender – tampouco os turistas que se entretêm a fotografar e filmar os artistas no limite da distância mínima vital. Só o senhor que se senta ao meu lado no banco de jardim, depois de cumprimentar e antes de comentar que ali está bom, está fresco, só desse tenho a certeza de ser real. Vem diretamente do tempo do meu avô, quando nos sentávamos a descansar dos passeios pela cidade e era habitual esta conversa entre contempladores das horas que, descobria depois, não eram afinal velhos amigos, ao contrário do que eu supusera, e, aliás, frequentemente nem sabiam os nomes uns dos outros.

A Rua Direita é um projeto artístico e cultural desenvolvido pela associação Cães do Mar e financiado pela Direcção-Geral das Artes, que leva a música, o teatro e a dança à rua do mesmo nome em Angra do Heroísmo. A primeira edição aconteceu apenas no ano passado, corajosamente na ressaca dos confinamentos da Covid-19; a segunda terminou agora, depois de seis dias de instalações e performances, entre 7 e 16 de julho.

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É uma interferência não intrusiva, um quotidiano levemente infetado de teatralidade. Uma contaminação suave, benigna, recorrentemente feita de memórias da cidade

Hugo Silva

A ideia não será nova, mas rejuvenesce sempre: tirar a cultura das salas e metê-la nas ruas, onde nasceu e a que pertence. Numa ilha como a Terceira, de fortíssimas manifestações de cultura de raiz popular, mas porventura menos atreita aos salões, o serviço torna-se ainda mais público.

Cinco espectáculos de 10 a 15 minutos a acontecerem todos à mesma hora, sete vezes por dia, mais duas instalações e um espectáculo final, nas varandas da rua. Entre cafés, lojas, esquinas e um posto de turismo. Peter Brook dizia que bastava um tapete para se fazer teatro; aqui, até isso foi quase sempre dispensado. As performances acontecem enquanto entram e saem clientes e fornecedores, passam transeuntes e param curiosos. Há os que passam e nem notam, os que passam e não ligam, os que param e ficam, os que temem a interação com os atores, os que se acham mais atores do que os atores e até um ou outro espécime desses que estão mesmo ali, àquela hora, de propósito para assistir.

É uma interferência não intrusiva, um quotidiano levemente infetado de teatralidade. Uma contaminação suave, benigna, recorrentemente feita de memórias da cidade, da recuperação de histórias daqueles lugares como eles já não são ou de pessoas que já não pisam aqueles passeios – e, nesse sentido, sabe por vezes a uma dimensão paralela a que, de repente, somos capazes de aceder. Como se as coisas nunca passassem inteiramente – e as cidades fossem feitas de tudo o que já aconteceu.

O exercício é tão mais interessante quanto só às vezes feito por locais. Desde logo na direção artística do festival, dividida por Ana Brum, terceirense, e Peter Cann, inglês das Midlands, que também já passou pelo teatro da serra de Montemuro. O violinista que tocava no início do texto no Pátio da Alfândega chama-se Derek Nisbet e vem da mesma ilha. É diretor artístico dos Talking Birds e autor de quase toda a música que atravessa a rua por estes dias. Ao lado, em “Cartas do Exílio”, tem a jovem terceirense Carolina Raposo e o rapper cabo-verdiano Edmir Ribeiro.

No café Verdemaçã, que foi, até há poucos anos, uma célebre loja de tecidos, Diana Rosa, que é da Marinha Grande, dança através dos anos e das “Medidas de Utopia” a luta da emancipação feminina. Ao balcão da Basílio Simões & Irmãos, histórica mercearia angrense que vende tudo a granel ainda não tinha nascido o primeiro hipster, a baiana Bianca Mendes compra e vende histórias com a ajuda de Hélder Xavier em “Quando Ninguém Vê” (na folha que me dá, escrevo a mais pequena história que me ocorre. Uma minúscula história escondida na calçada de Lisboa e só conhecida talvez entre os mais fanáticos apaixonados da cidade, ou os mais cabisbaixos: “Era uma vez um homem que era sempre justo.” Mas estamos em Angra e Bianca não conhece a história. Ainda assim, resolve-a bem: especula que o homem se chamasse Justo – na verdade, é um final mais feliz.)

Sabe por vezes a uma dimensão paralela a que, de repente, somos capazes de aceder. Como se as coisas nunca passassem inteiramente – e as cidades fossem feitas de tudo o que já aconteceu

Hugo Silva

O topónimo é bem conhecido de muitas localidades portuguesas. No caso de Angra, a Rua Direita foi, em tempos, a mais importante. Atravessava diretamente da alfândega, aonde chegava todo o comércio, à casa do capitão-donatário, a autoridade máxima em terra, assim que o relevo da ilha começava a subir e donde era fácil controlar quem entrava e saía da baía. Portanto, fica-lhe bem a interculturalidade. Fica bem, aliás, a toda uma ilha em que a presença americana foi só o capítulo mais recente de uma longa história de marés que levam e trazem. Afinal, era aqui o porto de escala da carreira das Índias, onde se abrigavam durante meses os barcos vindos do Oriente, até que estivessem reunidos em número suficiente para poderem ser escoltados em segurança até Lisboa pela Armada das Ilhas.

No interior do Posto de Turismo, um desses pátios de pedra que se pode passar anos por Angra e não conhecer, guarda uma fonte e a memória de uma das ribeiras que abasteciam originalmente a cidade. É ali que desagua agora também, momentaneamente, a história de Romulus Neagu, que antes passou pela Ópera Nacional de Bucareste, pela Companhia Paulo Ribeiro ou pelo Teatro Nacional São João. “Uma Lembrança de Água”, poética e incontrolável, a que a distância a que o público é colocado, num varandim no primeiro andar, empresta uma aura de intangibilidade.

Pela Travessa de São João, o ator terceirense Ricardo Ávila, aliás, “Alfredo”, desce alegremente, pisando o único tapete vermelho que veremos no festival. Vem ocupar o lugar de assistente ao lado do “Mestre Elias”, magnífica marioneta de Sílvia Fagundes e bondoso corcunda desta Notre-Dame. À esquina com a rua que importa por estes dias, Ricardo é o ator que mais se expõe à eternamente incontrolável “colaboração do público”. Mas aguenta-se com distinção. Elias é uma personagem comoventemente saída de outro tempo, quando a fotografia era um acontecimento, mesmo que o título da peça remeta já para técnicas mais aceleradas – “À La Minute”. Confunde quem passa com figuras da cidade há muito desaparecidas, numa linguagem tão elegante e antiga como a roupa que Sílvia lhe vestiu, também elas anacrónicas e eternas. Como as memórias longínquas desses interlocutores de meu avô, desses passeios, desses bancos de jardim, dessas fotografias, desses sons, desses modos de mundos que cada um de nós ainda habitou, cada um nos seus lugares da infância, e que às vezes a bazófia tonitruante da modernidade quase faz esquecer que ainda chegaram a ser nossos.

Sem surpresa, são fantasmas quem nos espera à despedida, para o espectáculo final. Irrompendo às portas e varandas da rua, bruxas, bêbedos, marinheiros, monges, pregadores e vendedoras que por ali andam há 500 anos, “De Vez em Quando”, passam para este lado da vida. Aqui encarnados pelos atores do Alpendre Grupo de Teatro e pela Matilha, zombam e cantam. E o povo de Angra, que à hora de almoço de sábado parece mais abundante do que a qualquer hora da véspera, saúda-os com a alegria de quem, há algum tempo, parecia esperar uma ideia assim.

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