Mais do que nunca, Allyson Felix merecia festejar. Aos 36 anos, tinha acabado de realizar a última corrida da carreira, despedindo-se das pistas perante a familiar multidão de Eugene, nos Estados Unidos. A medalha de bronze conquistada na final mista dos 4×400 metros dos Mundiais foi a 19.ª que colocou ao pescoço ao longo de oito edições — alargando o próprio registo enquanto norte-americana mais bem sucedida no atletismo. No meio dos festejos, porém, o telefone voltou a tocar.

Escassos dias depois de terminar oficialmente a carreira com o tal bronze na final da estafeta mista e quando já estava em Los Angeles, Allyson Felix foi chamada de volta a Eugene, no Oregon. A equipa feminina dos Estados Unidos precisava do seu contributo nas rondas de qualificação dos 4×400 — e a atleta não hesitou.

“Estava no Halloween Cafe, um dos meus restaurantes de fast food favoritos. Estava a comer asas de frango e uma cerveja sem álcool quando recebi a chamada. Só perguntaram se estava disponível para voltar e correr na qualificação para ajudar a equipa a chegar à final. Por isso, larguei as asas”, explicou Allyson Felix, que se apressou a ligar ao treinador para perceber o que ainda podia fazer para se preparar fisicamente. “Liguei ao Bobby [Kersee], ele deu-me uns exercícios específicos para fazer e saltei para um avião para voltar para cá. É uma honra estar aqui, correr em frente ao nosso próprio público e ajudar a equipa”, explicou, já depois de cumprir o que lhe havia sido pedido.

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Na qualificação, Felix foi a mais rápida das quatro norte-americanas (fez os respetivos 400 metros em 50.61 segundos) e deu um enorme contributo para a vitória no heat, garantindo a presença dos Estados Unidos na final deste domingo. Uma final onde não participou — mas que lhe valeu mais um ouro e a 20.ª medalha em Mundiais, já que a equipa formada por Talitha Diggs, Abby Steiner, Britton Wilson e Sydney McLaughlin ficou à frente das jamaicanas e das alemãs e venceu a estafeta.

Allyson Felix já uma tinha voz. Agora — com as suas 10 medalhas olímpicas — pode falar ainda mais alto

“Este é um momento que nunca vou esquecer, terminar a minha carreira com o rugido da minha própria multidão”, acrescentou a atleta, que foi sempre recebida com euforia pelos espectadores presentes em Hayward Field. Allyson Felix entrou nos Mundiais de Eugene enquanto a mais medalhada dos 1.900 atletas que competiram; ainda assim, não conseguiu qualificar-se nos trials dos Estados Unidos para as provas individuais, participando apenas nas estafetas.

Natural de Los Angeles, na Califórnia, estreou-se nos Mundiais de Helsínquia, em 2005, sagrando-se desde logo campeã do mundo dos 200 metros. A partir daí, acumulou as 20 que agora tem entre 200 metros, 400 metros e estafetas, juntou-lhes as 11 medalhas olímpicas entre Pequim e Tóquio e conquistou por direito próprio o título de “Campeã das Campeãs”. Allyson Felix pretendia terminar a carreira já durante o ano passado mas, devido à pandemia, decidiu esperar até 2022 para se despedir com público nas bancadas, garantindo que iria correr mais um ano “pela filha”.

Mas uma corrida nunca foi apenas mais uma corrida. Sempre que entrou na pista, Allyson Felix carregou aos ombros uma luta maior. “Quero que o meu legado seja o de alguém que lutou pelas mulheres”, disse a velocista à CNN, num artigo publicado cerca de um mês e meio antes de a norte-americana se apresentar em Tóquio para mais uma jornada olímpica. Ali, na capital do Japão, Felix ergueu uma nova bandeira: a de velocista mais medalhada em Jogos Olímpicos, com 10 pódios em cinco edições diferentes — um marco que a colocou ao nível do mítico Carl Lewis.

Allyson renasceu como uma Felix e tornou-se a Rainha dos Mundiais: aos 31 anos, é a mais medalhada de sempre

Esteve em Atenas em 2004 e foi segunda nos 200 metros; foi a Pequim em 2008 e repetiu o resultado anterior mas conseguiu superar o tempo que trazia da Grécia (e ainda trouxe o ouro nos 4×400 metros); vimo-la em Londres em 2012, onde foi ainda mais longe e arrebatou o ouro na mesma distância, com um tempo de 21,88 segundos (e ainda conquistou o primeiro lugar nos 4×100 e nos 4×400); e, há seis anos, competiu no Rio de Janeiro, regressando do Brasil com outras três medalhas (prata nos 400 metros e ouro nos 4x100m e nos 4×400).

Mas aquela marca em particular — o recorde de Carl Lewis, as 10 medalhas olímpicas e esse lugar reservado aos seres de outra dimensão — estava mesmo ali à espreita. Estava e depressa deixou de estar. Em agosto do ano passado, Felix arrancou para a prova de 400 metros e disputou a medalha até aos últimos centímetros da pista. Terminou a prova atrás de Shaunae Miller-Uibo (Bahamas) e de Marileidy Paulino (República Dominicana) e com a jamaicana Stephenie Ann Mcpherson a morder-lhe os calcanhares. Foi à justa — mas Felix levou a melhor. E subiu ao pódio.

A medalha, aliás, teve um sabor ainda mais especial pelo contexto do ano e meio anterior, totalmente atípico para todos os atletas. As limitações impostas pela pandemia — com o adiar dos Jogos de Tóquio para um ano mais tarde e as consequentes implicações que isso tem para a prestação de uma veterana como Felix — obrigaram a norte-americana a recorrer a alternativas para garantir que não deixava escapar a sua quinta ida consecutiva ao palco maior do desporto mundial.

Allyson Felix é a mais medalhada dos inscritos para os Mundiais de atletismo

Com os ginásios fechados e perante a necessidade imperiosa de manter a forma e não desleixar no rigor da preparação física, Allyson Felix virou-se para os campos de futebol vazios e para os areais de Los Angeles. “Foi uma experiência e tanto, com muita coisa que eu nunca poderia ter previsto, muitos desafios pelo caminho”, assumiu a norte-americana à CNN. “Ter simplesmente um local fixo para treinar foi o maior dos desafios. Nunca pensei que o caminho para Tóquio seria assim”, contou Felix.

É verdade que, de uma forma ou de outra, todos os atletas que estiveram na capital japonesa têm um testemunho semelhante para partilhar. Mas há outro detalhe na caminhada de Allyson Felix que torna o recorde conquistado em Tóquio ainda mais especial no caso da norte-americana: a 10.ª medalha olímpica chegou apenas dois anos depois do nascimento da filha, Camryn. Esse “detalhe”, a maternidade (uma experiência que veio com alguns percalços iniciais à mistura), acabou por dar-lhe mais força para continuar. “Ter uma filha pequena em casa é um mundo completamente novo. Deu-me uma motivação diferente”, admitiu no mesmo artigo da CNN.

E é aqui que voltamos ao tal “legado” que a atleta quer deixar inscrito na história do desporto. Camryn tornou-se fonte de inspiração e, ao mesmo tempo, o destino da mensagem à volta da qual Felix quis construir o que lhe restava da sua carreira desportiva. Um objetivo que, conta, nasceu de uma reflexão tão comum entre aqueles que olham para a sua descendência e começam a busca por um sentido maior. “Sempre senti o desejo de vencer. Agora, tudo se resume à forma como quero mostrar-lhe como superar as adversidades”, explicou.

As ideias que partilhou com a CNN, em junho do ano passado, acabam por ser o melhor resumo da força de Felix para lutar por esse legado. “Penso que, se me fizesse essa pergunta há alguns anos, [eu teria respondido que se trata de] recordes na pista ou o quão rápido eu corri. Mas, agora, penso que é sobretudo o objetivo de ter algum impacto no meu desporto.” O ponto é este: “Quero mesmo que o meu legado seja o de alguém que lutou pelas mulheres”, acrescentou. E se a voz de Allyson Felix já era escutada antes de Tóquio e Eugene, só se tornou ainda mais audível com a superação demonstrada na pista: é e vai continuar a ser, provavelmente durante vários anos, a mulher mais medalhada de sempre na corrida em pista.