De vez em quando, há brindes dentro de uma temporada de uma série. Entenda-se, um momento em que se sai da casca e tenta-se elevar o todo através de um modo que sai da tipificação a que se assistiu até então. Há não muito tempo, várias séries tentavam isso tendo o seu momento “Black Mirror”, um episódio que saía fora do contexto maior e que poderia ser um episódio da série de Charlie Brooker, se quiséssemos entender a coisa assim. Foi um processo que se instaurou em diferentes tipos de séries (apesar de ainda ocorrer, não tem a frequência de há cinco/seis anos), até as que poderiam ser imunes a isso, como o regresso de “Ficheiros Secretos” em 2018: o episódio “Rm9sbG93ZXJz”, onde Mulder e Scully ficam presos num restaurante de sushi onde tudo é automatizado. Poderia ser um episódio de “Black Mirror” (ainda por cima, um dos bons).

As séries de banda-desenhada/super-heróis também tentaram esse efeito, seja “WandaVision”, em “We Interrupt This Program”, quando o espectador é convidado a sair da sitcom que andava a assistir até então; ou em “Chapter 7” de “Legion”, a incompreendida série de Noah Hawley sobre uma personagem menor do universo de X-Men. “Chapter 7” ainda hoje é brilhante pela forma como inteira o espectador sobre o propósito de Hawley com “Legion” obrigando-o a sair da sua bolha e a aceitar o inaceitável. É uma exigência furiosa, quase desesperada, que funciona (e gratifica de diversas formas o espectador). Era um pico neste género, até “24/7”, o quinto episódio de “The Sandman”, a série que adapta a criação de Neil Gaiman e que estreou há dias na Netflix.

Estes episódios são preciosos. E a Netflix sabe disso – já o fizera antes na primeira temporada de “The Witcher”, por exemplo, que foi um tremendo sucesso. São prendas para quem já está agarrado. São o gancho que agarra quem está indeciso. E em “The Sandman” acontece mais cedo do que esperado, ao quinto episódio. “The Sandman”, a adaptação que Neil Gaiman andou a tentar adiar que se fizesse, até perceber que não dava mais – foram mais de três décadas — , e que a Netflix até estava disposta a seguir a sua visão, é uma adaptação possível das novelas gráficas. E, por possível, não se entenda como algo limitador, mas como o cumprir de uma promessa: num imaginário tão refastelado na ideia de sonhos, é complicado que as imagens em movimento cumpram o universo riquíssimo e fantasioso da banda-desenhada. Porque é mais fácil não acreditar no que se vê numas tiras em papel do que na televisão.

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Eis então a dificuldade de “The Sandman”, a série de televisão: tentar apresentar ao espectador um universo que é tangível para quem desconhece os livros e que corresponde e surpreende para quem está inteirado – e com expectativas – da obra original. Esta primeira temporada – sobretudo os primeiros episódios – concentra-se muito na ideia de construção de um mundo, onde o protagonista, Dream / Morpheus (Tom Sturridge), rei dos sonhos e dos pesadelos e, também, quem controla a terra dos sonhos, é capturado involuntariamente durante um ritual. A história começa aí e, depois, avança – tal como no livro – para o período em que finalmente se liberta e tenta reconstruir o seu mundo dos sonhos, entretanto caótico e com efeitos no mundo real.

O jogo entre real e sonhos é constante. Tal como é o que acontece com outras personagens mitológicas/irreais do universo, seja Lucifer Morningstar (Gwendoline Christie), Corinthian (Boyd Holbrook), um pesadelo em forma de vilão, ou Patton Oswalt como o emissário corvo de Dream. A transposição das personagens da folha para o ecrã está ótima e, embora algumas possam não criar algum consenso junto dos fãs, estão em linha com aquilo que é sugerido em “The Sandman”, a obra original. A forma como as diferentes narrativas começam a surgir ao longo dos episódios e se cria um fundo de maneio para outras temporadas, é ótima mas, lá está, também deixa aquela ideia de demasiado tempo na construção de um mundo. Bem, talvez fosse necessário.

E é aí que entra “24/7”, no meio de tanto que se pede ao espectador – o que desconhece a novela gráfica –, surge ali no meio um episódio que apazigua, que coloca uma das personagens, Johnny Dee (David Thewlis) num diner a interagir com diferentes personagens durante um dia inteiro. A descrição parece banal, mas o contexto é tudo. A gestão do tempo, a interação e a forma como faz a história rolar e dar mundo ao espectador é singular. Por momentos, há a sensação de que se está noutro lado, noutra série – difícil de dizer qual, tanto pode ser “Twin Peaks”, como “Ficheiros Secretos” ou um “Black Mirror” místico –, mas é só uma sensação, porque o corpo está bem enterrado em “The Sandman” e em tudo o que construiu até então. Afasta, sem afastar, para deixar, ao longo de um episódio, de ser uma série de fantasia e colocar-se no drama “adulto” com uns pozinhos de irrealidade. Se até aí “The Sandman” não convenceu, “24/7” agarra.

Momentos como este explicam porque é que “The Sandman” só existe agora numa adaptação para televisão. O formato do streaming convida a que estes joguinhos aconteçam e que estes episódios sirvam melhor o seu propósito no contexto de binge watching. São uma falsa pausa na normalidade na série porque, na realidade, fazem avançar mais do que os outros. E este quinto episódio faz com que toda a temporada brilhe e que se espere, ansiosamente, por mais. Para já, valeu a pena os trinta anos de espera.