O embaixador de Portugal em Doha, no Qatar, foi exonerado pelo Presidente da República por proposta do Governo. António José Alves de Carvalho estava no cargo desde 2020 (altura em que deixou de ser embaixador na Guiné-Bissau) e — apesar de ser ano de Mundial de futebol — deixa a embaixada numa altura em que dois casos polémicos envolvem o nome dos representantes portugueses no Qatar: o de um português que está retido nas instalações da embaixada, sem condições, a aguardar julgamento; e as declarações do chefe da missão da embaixada que recusou a existência de racismo no país.

“É exonerado, sob proposta do Governo, o ministro plenipotenciário de 1.ª classe António José Alves de Carvalho do cargo de Embaixador de Portugal em Doha”, pode ler-se no decreto publicado a 5 de agosto, depois de isso mesmo ser proposto pelo Governo no mês de julho, ainda antes do caso das polémicas declarações do chefe de missão da embaixada portuguesa (mas já depois de ser conhecido o caso do cidadão que se encontra a viver junto à embaixada).

Contactado pelo Observador, o Ministério dos Negócios Estrangeiros explica que “está em curso uma rotação de embaixadores — procedimento habitual na carreira diplomática” e assegura que a mesma “nada tem a ver com alguns casos relatados pela imprensa recentemente”.

O gabinete de João Gomes Cravinho refere que está a aguardar a “anuência das autoridades do Qatar, em conformidade com a prática diplomática estabelecida, para que se possa proceder à nomeação, nos termos habituais, do próximo embaixador de Portugal em Doha”.

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Chefe de missão nega existência de racismo

Manuel Gomes Samuel é o protagonista de um dos “casos relatados pela imprensa” a que o MNE se refere. Já após a exoneração do embaixador, numa reportagem da SIC que revelava violações de direitos humanos no Qatar, nomeadamente entre os trabalhadores que estão no país para erguer infraestruturas para o Mundial 2022 e para expandir a cidade, o chefe de missão da embaixada portuguesa, Manuel Gomes Samuel, recusou a ideia de racismo. “É natural que uma pessoa que tem mais melanina na pele, portanto mais habituada a climas em que o sol tem uma incidência mais forte, tem mais capacidade, obviamente, de persistência a essas temperaturas do que um habitante, por exemplo, do norte da Europa”, realçou.

Realçando que viveu em 12 países, o diplomata deu-se como exemplo: “Eu próprio sou testemunha que os cataris, os locais, têm um tratamento condigno para com os estrangeiros, porque eles sabem que também dependem dos estrangeiros.”

Após a reportagem, o Ministério dos Negócios Estrangeiros assegurou ao jornal Expresso que não se revê nas declarações do chefe de missão e que estas “não representam a posição oficial do ministério”. “O Ministério dos Negócios Estrangeiros condena, da forma mais veemente possível, qualquer forma de discriminação racial, racismo e xenofobia, sendo o seu combate uma prioridade de Portugal, tanto internamente como na ação externa que esta área governativa acompanha”, referiu na altura o gabinete de João Gomes Cravinho.

Cidadão português retido e sem respostas

O outro caso polémico é o de César Ferreira, um português que está retido no Qatar há mais de seis meses. A história foi contada pelo próprio, em vários e-mails que chegaram ao Observador nos últimos meses e nos quais deixou acusações à embaixada portuguesa no Qatar, que, segundo denuncia, o colocou numas instalações com um metro quadrado, sem cama, com apenas uma refeição diária e sem respostas.

O cidadão português foi despedido da companhia Qatar Airways, alegadamente sem justificação, e à revista Sábado revelou que o dono da empresa “não gostou da forma transparente, sincera e honesta” com que partilhou com “os colegas, recursos humanos e administradores, os procedimentos caóticos e desonestos” a que foi sujeito na companhia. O visto de residência que o permitia viver no Qatar acabou por caducar.

Depois de dois meses detido — em que demorou um mês a receber a visita de um funcionário do consulado português — César Ferreira foi libertado, mas continua à espera de julgamento e não tem autorização para sair do país (estando a viver numa espécie de anexo improvisado na embaixada). O cidadão português foi condenado a pagar uma multa equivalente a dois mil euros, mas recusou-se a fazê-lo por considerar que está a ser alvo de uma injustiça, e sabendo que outros colegas passaram por processos idênticos no Qatar.

Em declarações ao Observador, César Ferreira demonstra estar refém nas imediações da embaixada, referindo que não pode sair porque arrisca uma “captura com exigência de pagamento de resgates”. “Até obter de forma oficial, por escrito, a garantia do Estado português e do Estado do Qatar que a minha liberdade não será violada, que a minha vida será protegida e que a minha passagem será garantida para fora da jurisdição ou do espaço aéreo do Estado do Qatar, não poderei ausentar-me deste local da nossa missão diplomática”, explica.

No espaço em causa, com cerca de um metro quadrado, o cidadão português não tem uma cama, apenas um pequeno sofá. No vídeo a que o Observador teve acesso é possível ver a humidade nas paredes e a água que escorre do ar condicionado para o chão e para o sofá.

“Não houve qualquer alteração das minhas condições desumanas, sem privacidade, mesmo à porta de entrada da embaixada Portuguesa. As pessoas estão constantemente a tentar abrir a porta deste cubículo de madeira, a espreitar e a bater à janela. Há mais de três meses que estou como um animal em exposição, em condições degradantes e humilhantes“, conta o cidadão português.

A embaixada providencia uma refeição por dia a César Ferreira (uma caixa de arroz, com um pedaço de frango e um pouco de sumo diluído em água) — que chegou a ser informado de que deixaria de ter acesso a alimentação —, mas “após a exoneração do embaixador, a embaixada não implementou a ameaça”.

O português conseguiu recuperar as malas que lhe foram retiradas quando foi detido, mas continua sem telemóvel e acusa a embaixada de lhe “restringir a facilidade em comunicar”, tendo cortado “por completo o acesso à rede” no dia 7 de julho. Desde esse momento, César Ferreira pede ajuda “a quem passa” para “conseguir receber e emitir correspondência eletrónica”.

Nos últimos dias, César Ferreira reportou que Radha Stirling, fundadora da Detained in Doha and Due Process International e conhecida advogada na defesa dos direitos humanos em casos de detenções injustas, irá defender o seu caso, frisando que este parece “fácil resolver em comparação com outros mais complexos noutros países”. Porém, entende que só será possível se houver “vontade de resolver” por parte das entidades portuguesas.

A especialista considera que o Governo deve referenciar o caso do cidadão português como sendo de “prioridade máxima” e que, após essa tomada de posição, deverá ser a embaixada a agir e a “persuadir” a Qatar Airways a desistir das acusações.