Scott Morrison, que foi primeiro-ministro da Austrália entre 2018 e este ano, nomeou-se em segredo para cinco cargos adicionais em diferentes ministérios – uma situação que está a surpreender os australianos.

As nomeações foram feitas de forma secreta, já que não houve uma declaração pública sobre o assumir de pastas, como acontece habitualmente no país (em Portugal teria de haver uma tomada de posse após a nomeação ter sido aprovada pelo Presidente). Estes acontecimentos decorreram entre março de 2020, na primeira vaga da Covid-19, e maio do ano passado. De acordo com o jornal Guardian, o antigo primeiro-ministro terá assumido poderes adicionais em ministérios como Saúde; Finanças; Indústria, Ciência, Energia e Recursos; Interior e Tesouro. E, em alguns casos, estas ações terão decorrido inclusive sem o conhecimento do ministro de cada área. A investigação sugere que, ao nomear-se para os diferentes cargos, Morrison teria poderes equiparados aos dos ministros já nomeados para cada uma das pastas.

As nomeações secretas foram divulgadas por dois jornalistas do grupo News Corp, durante as ações de promoção de um livro focado na resposta do primeiro-ministro australiano à pandemia de Covid-19.

O caso está a gerar surpresa e contestação na Austrália. Apesar da pressão, Scott Morrison já veio a público defender estas ações. Em comunicado, datado desta terça-feira, Morrison pediu publicamente desculpas aos antigos membros do executivo por “qualquer ofensa”. E, na mesma oportunidade, defendeu as ações tomadas, descrevendo-as como “uma salvaguarda em caso de emergência” durante os primeiros tempos da pandemia de Covid-19.

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De acordo com esta investigação, não haveria registos oficiais da tomada de posse de Morrison para nenhuma das cinco pastas. Esta auto-nomeação para os diferentes cargos, que deu poderes adicionais ao governante australiano, garantia a Morrison o poder de decisão em áreas críticas, caso tal fosse necessário. O Guardian refere contudo que David Hurley, governador geral da Austrália, teria conhecimento deste assunto, dando inclusive posse a Morrison nos diferentes cargos a pedido do governante.

À semelhança daquilo que acontece noutros países, os ministros australianos tomam posse numa cerimónia onde marca presença o governador geral, com câmaras presentes. Além disso, as nomeações são também inscritas nos registos oficiais.

“Arrependo-me, mas agi de boa fé numa crise”

Numa entrevista esta terça-feira, à estação de rádio de Sidney 2G, o ex-primeiro-ministro prestou mais esclarecimentos .

“Às vezes esquecemo-nos daquilo que estava a acontecer há dois anos e da situação que estávamos a enfrentar. Era uma altura não convencional e sem precedentes”.

E, na mesma ocasião, recorreu ao exemplo do Reino Unido para ilustrar o seu ponto de vista. “Boris Johnson quase morreu durante a noite”, afirmou, recordando a hospitalização do governante britânico, em abril de 2020.

Numa publicação adicional feita na rede social Facebook, recordou que, na primeira vaga, existia o “risco muito real de os ministros ficarem incapacitados, doentes, hospitalizados, incapazes de fazerem o seu trabalho em momentos críticos ou mesmo de morrerem”. “Como primeiro-ministro, considerei ser necessário pôr em prática algumas salvaguardas, redundâncias e contingências para garantir a continuidade e eficácia da operação do governo durante o período de crise”, escreveu no Facebook.

O ex-governante explicou que, em geral, “felizmente não foi necessário acionar nenhum” dos poderes reforçados. Scott Morrison nota que, nos ministérios onde tinha autoridade para agir, os ministros nomeados “exerciam o poder total dos seus departamentos e dos portefólios”, voltando a frisar que a medida funcionava como uma espécie de “partir o vidro em caso de emergência”. Além disso, sublinha que “não queria que os ministros tivessem dúvidas sobre as suas capacidades ou que fosse dada a ideia de que poderia haver uma redução do seu poder ou da sua autoridade, já que esta não era a intenção destes procedimentos”.

“O uso dos poderes de primeiro-ministro para exercer a autoridade de administrar departamentos tem claramente levantado preocupações. Arrependo-me, mas agi de boa fé numa crise”, vinca o antigo-primeiro-ministro.

Scott Morrison só terá usado os poderes adicionais uma vez – no Departamento de Indústria, Ciência, Energia e Recursos, para reverter a decisão de aprovar um projeto de gás na costa da Nova Gales do Sul. Keith Pitt, antigo ministro desta área, disse à imprensa australiana não ter conhecimento sobre a nomeação de Morrison para o cargo de ministro nesta área.

Atual primeiro-ministro lança farpas. “É uma destruição da democracia”

As críticas às ações de Scott Morrison, que continua a ser membro do Parlamento australiano, estão a ser feitas por antigos colegas de executivo e também pelo sucessor. Anthony Albanese acusou o antecessor de “destruição da democracia”.

Em declarações à imprensa em Canberra, replicadas também no Twitter, Albanese disse ser “completamente extraordinário que estas nomeações tenham sido mantidas em segredo pelo governo de Morisson e escondidas do povo australiano”. O governante australiano vai mais longe e deixa ainda acusações aos colegas de governo de Scott Morrison, pedindo responsabilidades “não só ao senhor Morrison, mas também a todos os outros envolvidos”.

Também Karen Andrews, que desempenhou funções como ministra do Interior no governo liderado por Morrison, avançou que nunca lhe foi dito pelo antigo primeiro-ministro que tinha assumido um cargo no seu ministério. “O povo australiano foi dececionado, foi traído”, acusou, em declarações citadas pela NPR. “O facto de um antigo primeiro-ministro se ter comportado desta forma, assumir de forma secreta mais pastas, mina o sistema de Westminster, é absolutamente inaceitável.”