Há momentos que nos obrigam a reajustar expectativas. Os imprevistos são uma espécie de traição do sistema que nos testam a capacidade de encaixe e superação. É assim na vida, com o é numa carta de um restaurante courense que não tem mãos a medir para tantos comensais – “menina, já não temos filetes, mas podemos-lhe fazer uma omelete”, disseram-nos ao almoço. O mesmo acontece com um simples alinhamento de festival. Esta breve introdução, deglutida com a ajuda de um copo de verde tinto, serve apenas para notar que o cardápio desta noite do Vodafone Paredes de Coura não foi exatamente aquele que a organização tinha programado.
O cancelamento dos King Gizzard & The Lizard Wizard obrigou a mexidas nos horários e o resultado foi termos BadBadNotGood, Idles e Beach House em sucessivos slots, trocando as voltas a muitos estômagos que não estavam preparados para estes solavancos estilísticos. Passar dos primeiros para os segundos não foi tão complicado como transitar dos segundos para os terceiros. Não que Idles tivesse sido memorável e Beach House um descalabro, mas um indie sonhador por cima de uma fúria hardcore é receita quase certa para arruinar o êxtase. A seguir ainda viriam os Viagra Boys, no palco secundário. O nome da banda, neste caso, é bastante autoexplicativo daquilo que aconteceu. Ao que parece, os imprevistos também nos sabem brindar com requintadas ironias.
O jazz líquido de BadBadNotGood
Quem trunfou no meio desta confusão geral foram os BadBadNotGood. O quarteto canadiano, que já tinha brilhado em 2017 neste mesmo recinto, “um dos melhores do mundo”, elogiaram, liquidificou os nossos corpos para nos fazer deslizar prazerosamente durante sensivelmente uma hora. Virámos todos água em Coura, o mar inundou o recinto enquanto o palco se manteve na penumbra, iluminado apenas pelo som da banda e palas imagens captadas em película de 60mm que passavam nos ecrãs.
Alexander Sowinski, na bateria, comandou as hostes, deixando fluir o seu improviso em momentos que tocaram o free jazz. Leland Whitty beijou o saxofone para soltar melodias demoradas e, nos intervalos, pegou na guitarra para encarnar uma persona que fundia Jimi Hendrix e Grant Green nos dedos e no espírito. Chester Hansen vincou o ritmo no baixo dando-nos terra, confundindo-nos os pés com as raízes das árvores que, em redor do palco, se balançavam com deleite. E Felix Fox brincou com as teclas, intercalando movimentos ascendentes e descendentes como quem atira um balão ao ar e vê-lo cair lentamente, para o atirar novamente com energia, saboreando esse gesto repetitivo até se cansar. À nossa frente tivemos quatro miúdos de Toronto a brincar com as imensas possibilidades do jazz. Haverá exercício mais pueril e delicioso do que este?
Se no início da carreira os BadBadNotGood se especializaram em fundir jazz com hip-hop, ao ponto de terem assinado colaborações com nomes como Tyler, The Creator, Frank Ocean, Bootsy Collins ou Kendrick Lamar, agora têm-se revelando cada vez mais experimentais, redesenhando e expandido sem restrições o seu talento. “Talk Memory”, o último álbum lançado em 2021, é o espelho dessas movimentações e não por acaso foi com ele que abriram o concerto desta noite.
Os canadianos têm em si o diálogo entre Isaac Hayes e Herbie Hancock, a sensualidade e imprevisibilidade de uma Erykah Badu e o good feeling da eletrónica de Caribou. Parece uma grande salgalhada, mas quem os viu nesta quarta-feira em Paredes de Coura percebe que a receita está temperada no ponto. É aqui que reside a tal liquidez da música, penetrando por brechas escondidas e engolindo todas as boas influências que encontra no seu deslizar. O caudal dos BadBadNotGood parece não querer estancar e ainda bem que assim o é.
Para eles, a oportunidade de viajar e de tocar ao vivo é uma honra, frisou Alexander, que olha para o Vodafone Paredes de Coura como um dos “melhores festivais do mundo”. Em jeito de homenagem a esta epifania, pediram-nos que acendêssemos as lâmpadas dos telemóveis – e mil pirilampos apareceram no ar – e que nos baixássemos como o havíamos feito em 2017, em “Lavender”, pulando livremente ao sinal de explosão dado pela bateria. Foi a comunhão total entre público e banda que, aqui no Alto Minho, parecem ter selado uma bonita relação de amor.
Idles e Beach House: dois mundos opostos a colidir em Coura
Amor é coisa que também não falta no vocabulário dos Idles. “Are you ready to colide? Are you ready for love?”. Aparentemente o público está preparado para isso tudo e muito mais, dada a reação apoteótica com que recebeu “Colossus”, faixa que trouxe a banda para cima de palco. Logo à segunda música Joe Talbot pediu que se abrisse um lanho na plateia para o mosh desgovernado de “Car Crash”. Os dados pareciam lançados para uma atuação insana, mas algo nos Idles não pareceu devidamente sintonizado com esse espírito.
Eles rosnaram, saltaram, aceleraram no baixo e na guitarra, deram porrada na bateria, porém as quebras demoradas entre músicas e uma escolha de reportório que pecou por alguns momentos de retração – como a vinda de “The Weel” a seguir a “Love Song” – deixaram-nos com a sensação de que este foi um concerto com muita parra e pouca uva. Não que o público se tivesse importado com isso, havia copos a voar à fartazana e ondas de corpos a moverem-se em total arbitrariedade de movimentos. No centro do furacão, estavam todos encharcados de sangue, suor e lágrimas. Nas margens, nem tanto.
Às vezes parece-nos que ouvir Idles é como amarrotar a roupa toda e despentear o cabelo num ato de rebelião, para logo a seguir voltarmos a pôr apressadamente a camisa dentro das calças e a fazer a risca ao lado. É um punk de purpurinas, um hardcore de glitter que nem todos estão dispostos a vestir. Contudo, esta contradição entre o feio, porco e mau e o lindo, limpinho e fofinho também faz parte do encanto destes meninos de Bristol que, honra lhes seja feita, se esforçam que nem doidos em cada atuação.
Os momentos mais fortes ficaram guardados para o final. “Danny Nedelko”, nome do amigo ucraniano e vocalista dos Heavy Lungs, homenageou os “imigrantes que fazem dos nossos países, países melhores”. A referência, infelizmente, vem mesmo a calhar – quantos amigos ucranianos já recebemos entre nós desde que a guerra começou, em fevereiro? O último ladrar da noite estava reservado para “Rottweiler”. “Obrigada por nos fazerem sentir bem-vindos no vosso beautiful fucking country”, agradeceu Talbot, confidenciando que já não mais se sentia sozinho no mundo e que podia morrer descansado nos braços deste oceano de pessoas bonitas, no seu “lugar favorito do mundo para tocar”. De todos os teus pecados te absolvemos, meu filho, podes fechar os olhos em paz.
Quem também se desfez em elogios foram os Beach House, quiçá tentando limpar a fraca imagem deixada em 2017 neste mesmo festival. Nessa altura entraram mais de meia hora atrasados e atuaram com o vigor de quem já tinha falecido há muitos anos. Hoje, porém, foram pontuais e garantiram-nos que não queriam estar em mais lado nenhum que não ali, num recinto onde até as árvores “se sentem bem”.
O céu, pela primeira vez completamente limpo, estava cheio de estrelas, tantas quantas os Beach House fizeram brilhar atrás deles, nos ecrãs de suporte. O cenário celestial estava assim montado, natural e artificialmente, para que os norte-americanos explorassem a sua sonoridade onírica à vontade. Este é o habitat natural de temas como “Norway”, “Silver Soul”, “Take Care” ou “Myth”, aqueles que foram mais suspirados pelas filas da frente.
Os cabelos a tapar a cara de Victoria Legrand, o preto e branco a envolver misteriosamente Alex Scally, Saturno e Júpiter brilhantes lá no alto, fizeram-nos crer que não havia grandes mudanças na estética desta dupla natural de Baltimore. Porém nota-se que “Once Twice Melody”, oitavo álbum lançado este ano, trouxe uma ligeira aragem de synth pop, disco e shoegaze ao indie psicadélico que os moldou no início de carreira. São mudanças ténues, embora percetíveis, talvez não o suficiente para nos conseguir surpreender e nos elevar para um patamar verdadeiramente astral. Na despedida, “obrigada a este festival por nos receber”, ficamos com a sensação de que já tínhamos visto este concerto noutra ocasião, o que não é o desabafo mais lisonjeiro que se pode ter em relação a uma manifestação artística.
Do regresso das Music Sessions à surpresa de Indigo de Souza
Muito antes de vermos estrelas no céu, ainda o sol das cinco da tarde nos rosava as bochechas, houve um autocarro que nos levou até uma sala onde crianças e jovens brincam de músicos. Era o momento de Mema. nos dar um cheirinho da sua “Cidade de Sal” (2020). O primeiro EP da artista aveirense foi a banda sonora da primeira Music Session desta edição, os concertos em lugares secretos que estendem o festival para lá das fronteiras do seu recinto. Começaram em 2013 e, quase dez anos volvidos, Paredes de Coura continua a desvelar pequenos encantos naturais e comunitários que, através do poder da música, nos contam histórias da região e dos seus habitantes.
Aqui, por exemplo, na Associação Cultural Recreativa e Desportiva de Padronelo, há miúdos que pegam em guitarras, flautas, órgãos, na sua voz, nas suas palmas, no seu corpo para desenvolverem o seu lado artístico. Um pouco como Mema. (então apenas Sofia Marques) fez em Aveiro. Continuou a formação em Berlim, Dublin e voltou a aterrar em Portugal já de personalidade musical vincada entre a tradição, o indie e a eletrónica, pronta a dar-se ao mundo com um álbum de estreia que será lançado no próximo ano. “Estou um bocado comovida”, diz para uma plateia que a aplaude em 360º graus, “ainda sou um bebé nestas andanças”. Será ela a abrir as honras do palco principal neste segundo dia. É a sua estreia em grandes festivais, “quero que me deixem viver o momento”. Nós deixámos, ela viveu.
A luz esteve bonita durante o dia. A chuva fez as malas e foi embora, o sol alojou-se na nossa pele sem queimar e os Gator, The Alligator, no palco secundário, tocaram as suas malhas vestidos de branco completo, como se tivessem saídos do enredo de “Laranja Mecânica”. Sem práticas sádicas a registar, a única pancadaria a que assistimos foi a que este quinteto infringiu na bateria, no baixo e nas guitarras, no coração de qualquer velha alma do rock que veio para aplaudir a banda de Braga.
Há gente de todos os cantos e sotaques em Paredes de Coura e a vizinha Espanha não é exceção. A Galiza sempre gostou de namoriscar este festival raiano. Rodrigo, que encontrámos de cerveja na mão e com o seu numeroso grupo de amigos, tem 42 anos e já cá vem desde 2000. Na altura, diz, “não havia nada disto: nem madeira, nem pedra, só terra e ervas”. Eram tempos mais duros, lembra, “pero ahora tambien está guay”. Idles fê-lo atravessar a fronteira, depois regressará a O Grove. Derramará todo o espírito hardcore no relvado, a anarquia do campismo já não é para as suas costas.
Deste início de tarde, para além da lembrança dos concertos de Nine Inch Nails e de Foo Fighters, memórias que ninguém tira a Rodrigo, retivemos a presença das guitarras no alinhamento do cartaz. Aliás, Paredes de Coura ainda é o festival onde as seis cordas se apresentam próximas do seu estado mais puro, seja no folk rock de Alex G, que abraçou o pôr do sol e viu a colina encher-se de corpos sentados na relva, para, no crescendo da atuação soltar a garra em “Horse”; seja no “slacker indie” (atributo dado pelo The Guardian) das Porridge Radio, que no palco secundário foram tudo menos frouxas. Quem diz que o rock morreu é porque ainda não pisou as margens do Taboão. Os passes gerais e os bilhetes de sábado já estão esgotados, restam quinta e sexta para os impulsos de última hora.
Uma das boas surpresas deste dia surgiu no lusco-fusco. Indigo de Souza foi o prelúdio certo de BadBadNotGood. A grandeza das suas canções embalou os corações para o resto a noite. Com uma sonoridade muito bem temperada entre a raiva e a contenção, entre a leve sinfonia indie pop e breves apneias cardíacas (ouça-se “The Sun is Bad” e saboreie-se aquela suspensão provocada pela vírgula em Sun just don’t rise up for me, this time) a americana, com raízes brasileiras, deixou uma pegada forte em Paredes de Coura.
Ao que parece, o festival também a marcou. “É o festival mais bonito que já vi na minha vida”, disse de sorriso nos lábios, partilhando com o público a emoção de estar pela primeira vez em Portugal e num recinto onde os telemóveis permanecem em baixo e os olhos em cima, vidrados em quem nos dá música e, nesse gesto generoso, nos entrega um pouco de si. Já ontem Sam The Kid o tinha notado. Façamos um brinde a isso e a Indigo de Souza, cruzamento entre Lucy Dacus e Pj Harvey, lamento doce em espírito indomável. Ficamos com vontade de a ver novamente, talvez numa sala fechada e em registo próprio.