Aqui, Cabré dá a história de Ismael, um professor de literatura cuja infância foi difícil. Culpado pelo pai pela morte da mãe, acaba por crescer sem família, estudar, criar uma existência pacífica e banal. Isto, pelo menos, até à altura em que lhe cai um botão da camisa e reencontra uma antiga vizinha. Depois apanha boleia de um antigo aluno e a coisa não vai bem. Acaba por acordar confuso num hospital. A memória da vida está turva, a dos livros está melhor. Entende que passou por perigo, mas não se lembra de qual.

Com a vida para trás, sobrevive a literatura, e Cabré vai construindo a personagem de forma a piscar o olho ao leitor treinado. Assim, constrói um thriller que parece voltado para uma tragédia grega, usando o património da literatura mundial que começa logo no nome da personagem. A quem lhe pergunta qual é, a resposta é Melville: “Chamem-me Ismael.”

O tom permanente do romance, que faz lembrar o David de Coetzee, leva o leitor a um misto de ingenuidade e caos. Os diálogos parecem tacadas, o que dá ao romance uns laivos de peça de teatro, já que o drama é omnipresente e as conversas entre as personagens são grande parte da acção. O absurdo também nunca cede espaço, entre acções inverosímeis, uma teia que se adensa e histórias paralelas que apanham o leitor de surpresa. O que a início parece uma história contada por um tom infantil, que deixa o leitor na cabeça de Ismael em criança, acaba por ganhar contornos de fantasia e cedo o leitor deixa de tentar concatenar os elementos de forma a acreditar neles. Cada nova referência literária que a memória de Ismael deixou traz outra e a história narrada por Cabré acaba por se afundar em intertexto e intra-literatura, num jogo que tem graça por extrapolar as fronteiras do credível.


Título: “Consumidos pelo fogo”
Autor: Jaume Cabré
Tradução: Maria João Teixeira Moreno

Editora: Tinta-da-china

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O encanto mantém-se, a velocidade garante-o. A partir do momento em que Ismael acorda no hospital, parece já não haver volta a dar em termos de direcção de narrativa – não há como evitar os ziguezagues. O que parece um arco – o reencontro com a antiga vizinha – acaba por ser o propulsor do romance.

Não tendo a grandeza de livros anteriores, Consumidos pelo fogo acaba por primar pela subtileza. Os detalhes encadeiam-se em mal-entendidos, os mal-entendidos são assumidos como verdade que estrutura as páginas seguintes, e depois haverá outro. O romance cria-se em contornos metafísicos e o diálogo interior das personagens também se mistura com os diálogos entre as personagens, e aí é ficção pura sem querer fingir que é realidade. Em simultâneo, entra-se e não se sai do terreno da metáfora, que vai desde a arquitectura da narrativa ao detalhe dos nomes das personagens, que são também metaliteratura.

Consumidos pelo fogo adquire os contornos de uma peça de entretenimento, pegando nas falhas de memória de Ismael e metendo-as em cena com buscas policiais. As peças vão-se montando, compondo um romance de forma desconcertante, ainda que todo o tempo, mesmo nas partes em que Ismael é adulto, pareça querer recuperar o tom inicial, em que Ismael era criança e respondia como tal. É que, à medida que a narrativa avança, continua a ideia de que a história é contada sem que o protagonista saiba bem como a viveu, atrapalhando-se nos factos.

De resto, convém dizer que os movimentos relacionais, ao assumir-se um fluxo compulsivo, rápido, até absurdo, não chegam a quebrar a fluidez da leitura. Em Consumidos pelo fogo, Cabré dedicou-se à velocidade, e o romance é uma chuva disto ou daquilo, sendo que nunca ninguém entende bem de quê.

A autora escreve de acordo com a antiga ortografia