A defesa dos dois irmãos iraquianos acusados esta semana pelo Ministério Público (MP) de adesão a organização terrorista e de crimes de guerra vai pedir “de certeza absoluta” a abertura de instrução do processo.

“De certeza absoluta que vamos requerer a abertura de instrução”, declarou à Lusa o advogado Vítor Carreto, que assumiu ter tido conhecimento da acusação do Departamento Central de Investigação e Ação Penal (DCIAP) primeiramente pela comunicação social. “Ainda não tenho uma ideia sobre a acusação, é cedo. Primeiro, tem de ser traduzida também para árabe, só depois haverá uma [real] dimensão desta acusação”, continuou.

Ammar e Yasir Ameen, de 35 e 33 anos, estão em prisão preventiva no Estabelecimento Prisional de Monsanto (Lisboa) e o advogado adiantou que ainda não falou com os irmãos desde que foi conhecida na segunda-feira a acusação, que imputa aos arguidos a prática de crimes alegadamente cometidos fora de Portugal, nomeadamente no Iraque.

Irei lá brevemente“, esclareceu Vítor Carreto, remetendo para o futuro uma posição sobre a realização ou não do julgamento em solo nacional: “Quem decide é o tribunal, só lá para o final do ano é que deveremos ter alguma coisa do processo”.

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Segundo a nota do MP, esta foi a primeira vez que se deduziu acusação em Portugal por crimes de guerra contra as pessoas. “O Ministério Público do Departamento Central de Investigação e Ação Penal deduziu acusação contra dois arguidos de nacionalidade iraquiana pela prática de crimes de adesão a organização terrorista, de crimes de guerra contra as pessoas e, quanto a um arguido, também, de crime de resistência e coação sobre funcionário”, precisou o DCIAP.

No despacho de acusação, a que a Lusa teve acesso, o MP admitiu que “os factos pelos quais os arguidos vão acusados tiveram lugar, essencialmente, no Iraque, o que dificultou, sobremaneira, a aquisição da prova”. A acusação defende que os dois irmão são suspeitos de praticar os crimes em Mossul, considerado então o bastião do Estado Islâmico em Iraque.

Foram ouvidas várias vítimas e testemunhas em fase de inquérito, com o MP a revelar que se registaram ações de intimidação “no próprio dia da diligência” por parte de familiares dos dois arguidos, apesar de as respetivas identidades estavam sob segredo. O MP notou ainda que “as exigências de prevenção especial relativamente aos arguidos são muito elevadas“.

Em relação a Ammar e Yasir Ameen, a acusação considerou que “os arguidos juntaram-se intencionalmente ao autoproclamado Estado Islâmico”, e que “tinham pleno conhecimento” da sua caracterização internacional como organização terrorista, contribuindo ainda “para a divulgação do conhecimento do Estado Islâmico e dos seus feitos, sabendo que estavam a contribuir para o sistema de propaganda”.

“Sabiam que a implementação dos objetivos do Estado Islâmico pressupunha a comissão de crimes de guerra”, pode ler-se no despacho, que acrescenta: “Os factos praticados pelos arguidos colocaram em causa, de forma particularmente grave, bens jurídicos de elevada dignidade, tais como a integridade e independência dos Estados”.

Ao longo de quase 250 páginas da acusação, o MP reconstrói diversas etapas do percurso dos irmãos desde 2014, ano em que se defende que os arguidos juraram fidelidade ao Estado Islâmico. A ligação a Portugal começa em 14 de setembro de 2016, quando o Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF) recebeu um pedido da unidade de asilo grega para a recolocação dos irmãos e que foi aceite pela diretora do SEF em 3 de novembro desse ano.

A chegada a Portugal ocorreu em 29 de março de 2017, ao abrigo do Programa de Recolocação de Refugiados, com Ammar e Yasir a apresentarem logo um pedido de proteção internacional. Meses após receberem autorizações de residência, os Serviços de Informações de Segurança (SIS) avaliaram em outubro que era provável que os arguidos fossem dois dos identificados pelo serviço congénere no alegado planeamento de um atentado terrorista na Alemanha.

O comportamento de Ammar Ameen é especialmente visado ao longo do despacho, com o MP a relatar que em 19 de março de 2019, no Gabinete de Asilo e Refugiados do SEF, o cidadão iraquiano se irritou e exigiu obter a Autorização de Residência Permanente pedida. “Cheguei ao meu limite, eu suicido-me. Mas não morro sozinho. Estou a falar a sério”, disse em inglês Ammar Ameen, acabando por sair com nova ameaça: “Por agora vou-me embora, mas volto”.

“Não se tratava da advertência com a prática de um mal suscetível de ser enquadrado em fenómenos de mera criminalidade comum, antes pelo contrário, bem distinto e mais gravoso, tratava-se da advertência da prática de um atentado terrorista”, indica a acusação.

Em abril desse ano, o SEF recusou o estatuto de refugiado de Ammar e em maio foi emitido mandado de detenção e condução por estar em situação ilegal. Enquanto estava colocado no Centro de Instalação Temporária do Porto, “por motivos de segurança nacional”, o Ministério da Administração Interna (MAI) recusou o direito de asilo, um desfecho que Ammar tentou contrariar nos tribunais sem sucesso.