As segundas jornadas parlamentares do ano do Chega têm um objetivo muito específico: discutir o processo de revisão constitucional que o partido vai entregar na Assembleia da República e que tem como intuito alterar uma Constituição que André Ventura diz estar “esgotada enquanto modelo” e que precisa de ser substituída por “outra moderna, aberta e inovadora”, adaptada aos dias de hoje.

Num discurso de meia hora dirigido aos deputados do Chega e a convidados, o presidente do Chega enumerou algumas das prioridades para as alterações — onde levantou algumas das mais importantes barreiras desde a fundação do partido e onde abriu espaço a temas poucos explorados até agora.

Há temas dos quais o partido não abdica (e que vai insistir), como é o caso da prisão perpétua, das mudanças no sistema judicial com mão mais pesada para determinados crimes, mas também o combate à corrupção. Todos estes temas já chegaram ao Parlamento pelas mãos do Chega através de várias propostas desde que Ventura se tornou deputado único, mas nenhuma delas teve qualquer apoio das restantes bancadas.

A falta de apoio de outros partidos da direita não é um desincentivo para o Chega, com Ventura a aproveitar-se para atirar-se ao PSD do passado recente e a acusar o ex-líder Rui Rio de incapacidade na apresentação de um projeto de revisão constitucional. Depois da entrada da proposta do Chega, realça, “os outros partidos tinham 30 dias para contestar ou apresentar alterações” e “todos, sem exceção, de forma cobarde, decidiram não o fazer”. Porém, recorda, “o PSD disse que não participaria porque a seguir ao verão (de 2021) daria entrada de um projeto de revisão constitucional”.

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“Passou o verão de 2021, passou o outono, o Orçamento do Estado, ou não passou, tivemos eleições, tivemos repetição dos círculos europeus, tivemos um novo Governo, chegámos a ter Fernando Medina como ministro das Finanças e no meio disto tudo o PSD não teve tempo de apresentar um processo de revisão constitucional”, sublinhou André Ventura, deixando nota que o Chega fez diferente e está preparado para fazer uma nova tentativa.

Independentemente do apoio (que o partido sabe que não tem), o Chega quer insistir para contrariar uma Constituição que diz estar “esgotada enquanto modelo, no caminho para o socialismo que propõe, no modelo económico que propõe, na linguagem de latifúndio e nacionalizações e ultrapassada no modelo de saúde que propõe”.

“Foi pensada, discutida e aprovada no tempo em que muitos dos que aqui estamos não eram nascidos ou em que muitos éramos crianças. Está obsoleta”, aponta, dando o exemplo dos “direitos de privacidade que ignora, num mundo de digitalização que vivemos”.

André Ventura apontou o que precisa de ser alterado para alcançar aquilo a que chamou uma “constituição moderna” e começou por duas das principais bandeiras na área da justiça: “Defendemos a prisão perpétua e vamos continuar a defendê-la, a maioria dos países da Europa tem perpétua. E defendemos a castração química de pedófilos. É a melhor solução do mundo? Não, mas todas as que têm sido tentadas não funcionaram.”

Ainda na justiça, o presidente do Chega enalteceu que o partido pretende investir no “ónus da prova em crimes como o enriquecimento ilícito”, enaltecendo para a importância da “independência do Ministério Público e dos tribunais” por um dos “riscos maiores da democracia” ser os governos apropriarem-se da justiça e a usarem “contra os adversários políticos”. O partido quer pôr fim às “portas giratórias” e acusa PS e PSD de não gostarem de falar nisso por serem “os principais promotores dessaas portas giratórias”.

Na Saúde, o Chega considera ser preciso trabalhar-se no setor “sem ideologia, sem sectarismo, em que primeiro esteja o utente e o cidadão e não a orientação [dos partidos] sobre o que deve ser a saúde, se deve ser pública, privada, cooperativa ou metade metade”. No mesmo sentido, também na Educação, André Ventura afirma acreditar num “modelo de complementaridade e domínio”.

Também o tema da família volta a estar em cima da mesa nesta proposta de revisão constitucional, com o partido a querer “recolocar a família como o centro da educação e o pilar social”, e a insistir no tema da proibição do casamento de menores em Portugal.

“Não temos nada contra o Estado. Nunca defendemos que queríamos destruir o Estado, sabemos é que o Estado não é o dono das nossas vidas, dos nossos filhos, da nossa educação, das nossas propriedades.”

Sobre esta discussão, o debate ficou marcado também por uma intervenção de José Pacheco, deputado dos Açores, que roubou gargalhadas à plateia por ter dito que tinha “inveja” de Pedro dos Santos Frazão, deputado do Chega, pelo número de filhos. O objetivo da pergunta era mais sério: o parlamentar açoriano queria o direito à família tradicional na Constituição.

“Custa-me ser apontado na rua por ser casado, ter mulher e ter filhos. Nada contra os outros, mas gostava que estivesse na constituição que tenho direito a isto. Qualquer dia ter família é uma vergonha”, apontou durante a discussão.

O Chega prometeu ainda trazer para o debate a reforma fiscal do Estado, com o intuito de “pôr fim ao tabu de que a tributação, toda ela, tem de ser progressiva”. André Ventura reitera que o que fazia sentido nos anos 70 e 80 deixou de fazer sentido. “Chegámos a um ponto de desequilíbrio em que o sinal que se dá é que quando mais se trabalha, mais penalizado se é. E é por isso que Portugal tem perdido tanto talento nos últimos anos.”

E no seguimento do tema do trabalho, chegou o tema imigração, que André Ventura diz ser “preocupante” tendo em conta que “Portugal [já] deu [em 2022] mais vistos de entrada do que todo o ano passado” e que “ano passado Portugal foi o segundo país do mundo que mais nacionalidades acolheu”. “Nada seria preocupante se tivéssemos capacidade de integração e se quem vierm vier por bem e se não estivéssemos a perder os melhores”, sublinha, esclarecendo que é preciso uma reforma fiscal “competitiva” e que “não tenha medo de pôr em causa” o passado.

“A nossa proposta é tornar os impostos proporcionais e não progressivos, criar uma isenção para rendimentos mínimos e desonerar os bens essenciais”, salvaguarda o líder do Chega.

No primeiro debate das jornadas parlamentares, Filipe Melo, deputado do Chega, foi um pouco mais longe na apresentação das propostas, deixando um dos pontos de alteração numa constituição que diz ser “socialista”: o partido pretende incluir “a palavra trabalho no primeiro artigo da Constituição”.

E insiste: “Sabemos que está o direito ao trabalho na Constituição, mas queremos implementar o dever do trabalho.”

O mesmo no que toca à habitação, que Filipe Melo diz haver “muita habitação mal distribuída”. “Além da subsidiodependência, as casas atribuídas a quem tem à porta os BMW e os Mercedes”, realça, frisando que “a habitação é um direito que assiste ao cidadão, mas o papel que o Estado e as autarquias têm deve ser muito mais fiscalizador”, com a necessidade de investir num “critério muito rigoroso na atribuição das habitações”.

Fora do tema e ainda antes da discussão, André Ventura tocou noutra das bandeiras do Chega para falar sobre as “ondas de violência” em Setúbal e nas áreas redundantes, ao recordar o caso de um tiroteio no Fórum Almada e de um homicídio num bar. Não deixou de atribuir culpas: “Não vamos deixar passar em claro o que tem acontecido, temos um problema com a comunidade cigana em Portugal.”

Perante estas declarações, Ventura frisou ainda que dará entrada no Parlamento de uma proposta que leve ao “fim da impunidade da comunidade cigana em Portugal”, deixando a nota que isso acontecerá “quer Augusto Santos Silva goste, quer não goste”.

André Ventura fez ainda questão de tocar num dos pontos que é uma novidade para o Chega, e que admite que os partidos de direita deixaram escapar: “Deixámos a esquerda ganhar o Ambiente como se fosse uma causa de esquerda. Os conservadores têm pela natureza uma paixão muito maior do que qualquer de esquerda”, diz, frisando que será necessário um foco neste tema numa nova Constituição, apesar de, até aqui, o Chega não ter dado atenção suficiente ao tema.