É um jogo injusto, o das elegias. A quantidade de vezes que um cronista é chamado a escrever sobre alguém que morreu daria uma compilação triste e bela. De facto, os elogios fúnebres são sempre textos sobre a vida, não a morte, mas lamentamos nunca poder fazer o contrário, nunca poder dar a notícia de que nasceu Marlon Brando, ou nasceu Bowie, nasceu Javier Marías, nasceu Gorbatchov. Nunca sabemos. Nem a rainha. Nem no caso da rainha (que, ainda assim, foi notícia), se pôde titular: “Nasceu a rainha, a mulher que…”. Fiquem atentos, acompanhem, aproveitem, sorvam. Não se distraiam com os outros, concentrem-se nestes. Tirem tudo e deem-lhes tudo o que merecem. Era isto que queríamos escrever, enquanto é tempo. Mas nunca ninguém sabe o que a vida vai ser. Nem sequer quem será a rainha. Ainda bem. Mas, depois, dá nisto.

Hoje, a crónica é porque “morreu Godard”. Depois de ter mudado o cinema e fazer, há muitos anos, filmes que já não interessavam para nada. Mas, se alguém que mudou o mundo não tem direito a tornar-se irrelevante, quem tem? (e Gorbatchov é, a esse respeito, outro bom exemplo)

Noutros lugares, escreverão outras coisas. Jean-Luc Godard é o messias de muito bom cinéfilo e crítico. Está certo. Mas, se os elogios fúnebres, não forem pessoais, bastariam as entradas da enciclopédia e os perfis do Linkedin (Jean-Luc Godard, revolucionário, milhares de conexões, incluindo Truffaut, Chabrol, Rohmer, Rivette, Varda, Resnais e algumas das mulheres mais belas de sempre).

Nos anos 60, Godard salvou o cinema. Pegou numa arte que arriscava cristalizar-se numa perfeição de estúdio e voltou a pô-la a zeros. Se não o tivesse feito, outro tê-lo-ia acabado por fazer? Provavelmente, mas não foi assim que aconteceu. O que aconteceu foi Godard começar a escrever nos Cahiers du Cinéma com os amigos, pôr a crítica e a academia a olharem para Hawks ou Hitchcock, e daí saltar para trás da câmara e provar que sabia o que estava a dizer.

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Aquela década é toda dele. “O Acossado”, “Bando à Parte”, “Alphaville”, “Viver a sua Vida”, “Fim-de-semana”, “Pedro, o Louco”, “Masculino Feminino”, “Uma Mulher é uma Mulher” – alguns quererão acrescentar: “O Desprezo”. Mesmo quando os filmes não eram geniais, havia sempre algo de genial neles. O uso do mundo como cenário real, o filme sem guião ou escrito na hora, a verdade dos actores e da câmara, o reconhecimento da importância vital da banda sonora, a ruptura da quarta parede, a liberdade para perverter e subverter, o fascínio pela beleza de um verdadeiro escultor com uma câmara, do rosto de Belmondo ao rabo de Bardot. Voltem a estes filmes e descobrirão que muitos “génios” subversivos do cinema e da televisão atuais (e alguns bem da nossa praça) não fazem nada que Godard não estivesse já a fazer há meio século.

Depois, o mundo mudou – e mudou porque ele e alguns outros, no cinema, na música, na literatura, na política, o tinham mudado. Fora ao cinema americano buscar a vitalidade com que ressuscitou o cinema europeu e, depois, nos anos 70, os americanos foram ao cinema europeu buscar a vitalidade com que puseram o coração de Hollywood, de novo, a bater. Godard continuou sempre a filmar, mas já nem ele teria o mesmo entusiasmo em fazer o que já tinha feito – não podia ter. Deve ser a isso que chamam o preço do sucesso.

Desisti em “Eu vos Saúdo, Maria”. Depois, desisti em “JLG por JLG”. Desisti de vez em “Elogio do Amor”. E voltei a desistir para sempre em “A Nossa Música”. E vou, muito provavelmente, continuar a desistir de Godard por muitos e bons anos. É o mínimo que um cinéfilo pode fazer.

Muitos dos companheiros de Godard filmavam com mais coração; Godard era, diria, sobretudo cérebro. Mas é preciso dizer que foi o melhor de todos eles. E que, antes e depois de uma vida a filmar, escreveu sempre sobre filmes como ninguém. Dizia que o cinema tinha começado em Griffith e acabado em Kiarostami. Mas ali a meio, acrescentamos nós, quando chegou a Godard, trocou de campo.