O Patriarcado de Lisboa enviou recentemente para as autoridades civis uma lista com sete casos de alegados abusos sexuais de menores cometidos por padres do patriarcado, confirmou ao Observador fonte oficial do gabinete do cardeal D. Manuel Clemente, depois de uma notícia inicialmente avançada pelo jornal Expresso. Um dos nomes da lista é o do padre que está no centro da polémica noticiada pelo Observador em julho, que D. Manuel Clemente nunca tinha comunicado às autoridades até agora, apesar de o Patriarcado de Lisboa ter tido conhecimento do caso ainda na década de 1990.

Em causa estão um conjunto de nomes que foram denunciados por um padre do Patriarcado de Lisboa, que no início de agosto veio a público quando este deu entrevistas sob anonimato à RTP e ao Expresso. Nessas entrevistas, o sacerdote, que foi identificado pelo Expresso como “padre Cardoso”, explicou que durante vários anos foi recolhendo informações acerca de colegas seus sobre os quais pendiam suspeitas e acusações de abuso de menores.

Com base nas suas investigações, esse sacerdote terá chegado a uma lista com 12 nomes de padres, que foi entregue já este ano à Comissão Independente para o Estudo dos Abusos Sexuais contra as Crianças na Igreja Católica Portuguesa — organismo liderado pelo pedopsiquiatra Pedro Strecht que está a investigar a história dos abusos de menores ao longo da história da Igreja Católica em Portugal.

Abusos na Igreja. Padre terá entregue lista de 12 colegas suspeitos à comissão independente

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Na entrevista ao Expresso publicada em agosto, o padre disse que estava disponível para ajudar o Patriarcado de Lisboa, bastando que a Igreja lhe pedisse. Na sequência dessas notícias, a Comissão Diocesana de Proteção de Menores do Patriarcado de Lisboa pediu ao sacerdote em questão que lhe remetesse os casos respeitantes à diocese da capital.

“A pedido da Comissão Diocesana de Proteção de Menores do Patriarcado de Lisboa, o padre ‘Cardoso’ fez chegar um documento onde são referidos sete alegados casos, todos ocorridos há décadas. Desses, quatro são públicos, dois são atribuídos a sacerdotes já falecidos e um dos casos refere-se a um sacerdote que já não exerce o ministério”, disse fonte do Patriarcado de Lisboa ao Expresso, informação confirmada na tarde desta terça-feira pelo gabinete de D. Manuel Clemente ao Observador. “O documento foi entregue às autoridades civis competentes”, acrescentou fonte do Patriarcado.

Um dos casos da lista é o caso no centro da polémica com D. Manuel Clemente

O Patriarcado de Lisboa é parco nas informações que divulgou sobre a lista entregue às autoridades. Por exemplo, não diz a que autoridades em concreto entregou a lista. O Observador questionou o Patriarcado sobre se o documento foi entregue ao Ministério Público ou à Polícia Judiciária, mas não obteve resposta.

Mas a notícia agora confirmada pelo Patriarcado de Lisboa deixa muito mais perguntas do que respostas.

Em primeiro lugar, o Patriarcado reconhece que pelo menos quatro dos sete casos comunicados pelo sacerdote já eram do conhecimento público, o que significa que eram necessariamente do conhecimento do próprio Patriarcado. O que o gabinete de D. Manuel Clemente não esclarece é porque é que esses quatro casos, que já eram do conhecimento do Patriarcado anteriormente, não foram comunicados à polícia antes. O Observador questionou o Patriarcado de Lisboa sobre se a lista entregue pelo sacerdote incluía alguma novidade relacionada com os casos que justificasse uma mudança de posição na decisão de os comunicar ou não às autoridades, mas o gabinete de D. Manuel Clemente disse ter de confirmar essa informação junto da comissão diocesana, que é liderada pelo bispo auxiliar D. Américo Aguiar. Até à publicação deste artigo, o Observador não recebeu qualquer resposta.

Mas as dúvidas adensam-se quando se tem em conta que, segundo o Expresso, um desses quatro casos “públicos” é aquele que o Observador expôs no final de julho e que mergulhou o cardeal-patriarca de Lisboa numa polémica que o levou a reunir-se com o Papa Francisco e a colocar o seu lugar à disposição.

Patriarca de Lisboa recebeu denúncia de abusos e reuniu-se com vítima. Mas manteve padre em funções e não comunicou caso à polícia

Como o Observador noticiou, o caso remonta à década de 1990, altura em que um padre da região norte do distrito de Lisboa terá abusado sexualmente de um jovem. A família do menor denunciou o caso à hierarquia da Igreja, então liderada pelo cardeal patriarca D. José Policarpo, que optou por resolver o caso com uma simples transferência do padre, que foi colocado numa capelania — e a história nunca foi relatada às autoridades civis.

Duas décadas depois, em 2019, numa altura em que a abordagem da Igreja Católica à crise dos abusos de menores já se tinha alterado radicalmente, o novo cardeal patriarca, D. Manuel Clemente, encontrou-se pessoalmente com a vítima, já adulta, para ouvir a sua história. Na sequência desse encontro pessoal, D. Manuel Clemente continuou a não informar as autoridades civis do caso — e, mais notavelmente, manteve o padre nas funções de capelania que detinha, permitindo-lhe continuar a ter acesso a crianças e jovens. Além disso, o padre continuou durante todos estes anos a gerir uma associação privada onde acolhia famílias e crianças.

Em resposta à polémica que se gerou, D. Manuel Clemente escreveu uma carta aberta na qual admitiu que o caso foi tratado, no passado, de acordo com padrões que “não correspondem aos padrões e recomendações que hoje todos queremos ver implementados”. Ainda assim, o cardeal patriarca justificou as suas ações e argumentou até que o facto de nunca mais ter havido qualquer denúncia contra o padre significa que a proteção de futuras vítimas poderia estar acautelada.

Fica por esclarecer porque é que o Patriarcado de Lisboa decidiu, 23 anos depois de receber a primeira denúncia, enviar o caso para as autoridades civis. O Observador perguntou ao Patriarcado de Lisboa se a lista comunicada pelo padre continha novos detalhes que justificassem esta mudança de posição, mas não recebeu resposta. O Patriarcado também não explicou porque é que não comunicou o caso às autoridades anteriormente.

O outro caso que integra os tais quatro casos públicos é aquele que foi noticiado em janeiro deste ano. Trata-se de um padre que pertence ao clero da diocese de Vila Real, mas que exerceu funções no Patriarcado de Lisboa e que terá abusado de um menor há mais de 30 anos. O caso foi denunciado à comissão diocesana de Lisboa, que o encaminhou para a diocese de Vila Real — que já o comunicou às autoridades civis. Fica por perceber porque é que o Patriarcado de Lisboa comunicou agora repetidamente um caso que já tinha enviado para Vila Real e que já tinha sido comunicado à polícia.

Entre os quatro casos públicos contam-se ainda dois outros sacerdotes que já tinham sido investigados pelo Ministério Público — casos que foram arquivados em 2013.

O Observador questionou também o Patriarcado de Lisboa sobre os restantes três casos — dois relativos a padres que já morreram e um relativo a um padre que já abandonou o sacerdócio —, nomeadamente sobre o grau de conhecimento que a Igreja tinha sobre os casos antes desta lista comunicada pelo padre. Até à publicação deste texto, o Observador não recebeu qualquer resposta.