O encenador português Tiago Rodrigues apelou esta terça-feira a uma mudança de visão política, um “pacto de regime”, de investimento na criação artística, alertando que, “a prazo, vai ser a asfixia total” do setor cultural.

“Estamos tão longe, tão atrasados historicamente, que é preciso uma decisão por um ano, uma legislatura, que a Cultura e as Artes fossem uma prioridade política. O que faz falta — além de animar a malta — é mudar a realidade absolutamente ridícula daquilo que é o investimento do Estado na criação artística. Enquanto a realidade não mudar, todas as ótimas ideias vão falhar”, afirmou Tiago Rodrigues.

O encenador e dramaturgo português respondia assim a uma pergunta sobre o que falta no teatro em Portugal, numa entrevista em Lisboa, promovida pelo Clube de Jornalistas, em parceria com a agência Lusa e a Escola Superior de Comunicação Social, no âmbito dos 50 anos das comemorações do 25 de Abril e dos 40 anos do clube.

Tiago Rodrigues, diretor do Festival de Avignon, em França, quer que a Cultura “por uma vez seja tratada com um mínimo de dignidade”, aumentando o financiamento do que é o serviço público de Cultura.

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“A nossa criação artística é de uma excelência absolutamente inesperada para aquilo que são as infraestruturas, a capacidade e a forma como o Estado se comporta junto da criação artística. Da minha experiência comparativa com o resto da Europa, o que nós conseguimos fazer com tão pouco é absolutamente admirável, mas torna-se trágico”, disse.

No entender do dramaturgo português, “a prazo vai ser a asfixia total, tem sido uma asfixia lenta, mas ela vai acontecer se não houver uma mudança fundamental”, sublinhando que têm sido as companhias independentes a garantir “que há uma política cultural desde 1974”.

Questionado sobre o Estatuto dos Profissionais da Cultura, Tiago Rodrigues descreveu-o como “uma iniciativa interessante”, mas que se depara “com uma grande impossibilidade de ser posta em prática”.

“Companhias que não têm meios não vão conseguir cumprir a lei a menos que terminem essencialmente enquanto companhias. Podemos acabar com um ótimo estatuto, que gere uma economia que é tão precária que não vai cumprir o estatuto nem os portadores podem beneficiar dos direitos que ele oferece”, opinou.

“Haverá língua portuguesa em Avignon”

Sobre o trabalho à frente do festival, que mobiliza anualmente milhares de espectadores e que atribui a Avignon uma dimensão de “centro nevrálgico do teatro mundial”, Tiago Rodrigues disse que a língua portuguesa será uma das convidadas durante o seu mandato, que vai começar com o inglês, como já revelou antes à imprensa francesa.

“Tendo um diretor português, não posso ser provinciano ao ponto de omitir a possibilidade ao público mundial de contactar com a língua portuguesa. Não há ainda ano [marcado], mas haverá língua portuguesa”, disse, numa entrevista promovida pelo Clube de Jornalistas, em parceria com a agência Lusa e a Escola Superior de Comunicação Social, no âmbito dos 50 anos das comemorações do 25 de Abril e dos 40 anos do clube.

Na entrevista, Tiago Rodrigues considerou que “o teatro é uma bolsa de resistência e de pensamento”.

“O questionamento do que somos enquanto nação e país raramente é apoiado pelas políticas culturais; e esta noção de que os teatros escapam aos radares é uma bolsa de resistência e pensamento. Hoje mais indispensável do que alguma vez foi”, disse Tiago Rodrigues.

Tiago Rodrigues, encenador e dramaturgo, e que assumiu em setembro a direção do festival de teatro de Avignon, em França, explicou que o que lhe interessa no teatro e na criação teatral é “uma dimensão de intervenção”.

“É um teatro do questionamento, da pergunta e não da resposta, e a grande questão é sempre trabalhar para aprender a formular a pergunta. Eu não julgo que o teatro seja ação política. O teatro, quando muito, é uma antecâmara que leva à rua. É na rua que acontece a ação política”, sublinhou.

Tiago Rodrigues, que foi nomeado diretor daquele festival no verão de 2021, recordou hoje que estava em viagem, dentro do carro, rumo a Avignon, no dia em que começou a invasão militar da Rússia na Ucrânia, a 24 de fevereiro deste ano.

“Há essa coincidência que na altura foi difícil de decifrar. Foi interessante que senti que estava a mudar de vida de uma forma determinante num momento em que a vida mudava para muita gente no mundo e na Ucrânia. O meu primeiro gesto, chegando a França como ainda futuro diretor, foi pôr-me em contacto com diretores franceses”, para acolher e apoiar artistas ucranianos, recordou Tiago Rodrigues.

Recordando o seu percurso e aquele que terá sido o ‘clique’ que o levou a ser o homem do teatro que é hoje, Tiago Rodrigues apontou o Parque Mayer e os vinis de Raul Solnado.

“Quando era miúdo ia ao Parque Mayer, aquilo era incrível, era incrível. Para mim, o teatro era, e em grande medida talvez ainda seja, o Parque Mayer: o bulício, a festa, as farturas, a conversa. Claro que, como criança, não vivi o parque Mayer das reuniões conspirativas nos bastidores, mas era um Parque Mayer onde ainda transpirava essa história anterior ao 25 abril de 1974”, contou.

A “segunda coisa” que o marcou na infância foram “os ‘singles’ em vinil do Raul Solnado: ‘Meu capitão fiz um prisioneiro. Onde é que ele está? Não quis vir’”, lembrou, acrescentando que esses vinis da guerra e muitos outros eram coisas que ouvia repetidamente.

Mais tarde, no liceu da Amadora juntou-se a um grupo de teatro dirigido por um professor de sociologia, “um professor estoico”, daqueles que “passa no corredor, vê um miúdo com ar estranho e convida-o a fazer uma audição”.

Juntavam-se ao sábado de manhã para fazer teatro e isso confirmou que era “um sítio onde podia ser feliz”, embora, à altura, não soubesse que ia ser a sua profissão, o que descobriu mais tarde quando já trabalhava com os Artistas Unidos e Jorge Silva Melo.

“Durante muito tempo tive a certeza que o teatro não era muito feliz comigo, ou que não tinha grande apetência para o teatro, mas eu era tão feliz com o teatro, que queria lá saber se os outros achavam que eu não era grande coisa, que queria era fazer aquilo, e ainda é isso que eu faço, quero lá saber se não é grande coisa, a mim dá-me tanto gozo”.

“O teatro ainda é um lugar revolucionário”

Questionado sobre “Catarina e a beleza de matar fascistas”, o encenador e dramaturgo revê agora no espectáculo uma “dimensão profética” que não desejava e da qual não se pode alhear perante as eleições em Itália.

“Hoje quando estivermos a ensaiar essa cena, eu não posso não pensar em Itália. Há coisas que não tinham acontecido há três anos. Parece que a peça tem uma dimensão profética que eu não desejava”, afirmou Tiago Rodrigues, numa entrevista promovida pelo Clube de Jornalistas, em parceria com a agência Lusa e a Escola Superior de Comunicação Social, no âmbito dos 50 anos das comemorações do 25 de Abril e dos 40 anos do clube.

O encenador respondia a uma pergunta sobre a forma como o público tem reagido ao final da peça, durante um discurso de extrema-direita de uma personagem fascista (interpretada por Romeu Costa), com vaias, apupos e abandono da sala.

“Aprendemos que isso ia acontecer, quando estreámos em Guimarães”, afirmou, contando que essa situação criou uma crise entre os atores e o encenador, “houve náuseas”, discutiu-se se se mantinha a cena.

Tiago Rodrigues: “Populismo de extrema-direita é tratado como se tivesse lugar à mesa da democracia”

Partindo do “princípio de que o público é mais inteligente do que eu, aceito a legitimidade que não querer determinada peça ou estar interessado em determinada proposta”, disse Tiago Rodrigues, considerando que essa opção “não passa por maturidade, mas por ter tanta confiança no teatro, que a convenção desmancha-se”.

“Somos tão embalados pela peça que, no final, quando o discurso de extrema-direita ocupa o palco inesperadamente durante meia hora, o público coloca em pausa, suspende a sua distância em relação ao teatro”, disse o agora diretor do Festival de Avignon.

O dramaturgo confessou que não sabia se isso era bom ou não, mas está convicto de que “é um grande evento”.

“O público sabe que é um ator a dizer aquelas palavras, mas o discurso é tão insuportável, tão provocatório que o público não pode senão reagir”.

“Em Portugal, têm cantado a ‘Grândola’, em Itália, a ‘Bella Ciao’, em Viena, o público levantou-se. Ver esses públicos reagir é algo que me devolve confiança, mas ao mesmo tempo preocupa-me que o público tão facilmente se revolte contra um ator”, acrescentou.

Tiago Rodrigues começou a entrevista comentando o pedido de um deputado italiano, eleito pelos Irmãos de Itália (partido mais votado nas eleições de domingo, em Itália), para que o espetáculo “Catarina e a beleza de matar fascistas” fosse retirado de cartaz.

“Vemos esta ameaça desenvolver-se de uma forma que põe em causa uma ideia de democracia, de continente europeu, como continente democrático. Lido com isto tentando colocar as questões, com a possibilidade de conseguir colocar a questão da melhor maneira em palco”, explicou.

“Catarina e a beleza de matar fascistas” propõe uma distopia em que a extrema-direita venceu e centra-se numa família que há gerações mata fascistas, até que um dos elementos mais novos da família, Catarina, quebra essa “tradição” opondo-se a ela, com o argumento de que todas as vidas devem ser defendidas e que é preciso dialogar mais, não com os fascistas, mas com as pessoas que votam nos fascistas.

No final, o espetáculo termina com a vitoria do fascismo e com o monólogo de extrema-direita.

“Tem de acabar assim porque é uma tragédia. Tal como se dizia que Sófocles era um ‘bom vivant’, mas depois escreve ‘Antígona’ e Antígona morre no fim. Ali o que acontece é a vitória da extrema-direita pela incapacidade, a impossibilidade de uma democracia, naquele caso uma família que quer defender a democracia pela violência e mesmo assim é incapaz de impedir a vitória de um discurso fascista e antidemocrático”.

A ideia foi mesmo colocar em palco um discurso que muitos dos espetadores abominam, mas como “o teatro ainda é um lugar revolucionário”, as pessoas são expostas a esse discurso quando não esperavam que esse discurso emergisse.

“Ouvir esse discurso no teatro com pensamento crítico de espectador, é fazer raio x daquele discurso”.

Tiago Rodrigues destaca bem a diferença entre fazer certas afirmações enquanto artista ou enquanto político: “Quando digo ‘vão para a vossa terra’ [numa peça de teatro], é enquanto ficção, se digo como deputado, há uma violência que não pode ser encontrada numa obra de arte”.