As sugestões da Netflix são uma das poucas coisas que ainda nos fazem ter esperança de que talvez não esteja para assim tão breve o momento em que seremos dominados pelas máquinas. O algoritmo da plataforma de streaming calcula o perfil do utilizador com a precisão e fineza de uma retroescavadora e sugere-lhe, habitualmente, títulos em tudo semelhantes ao que este gosta de ver: isto é, imagens em movimento pré-gravadas e com um tempo de duração limitado.

Esta semana, porém, aconteceu o que, inevitavelmente, sucede quando se dispara em todas as direções: lá vem o instante em que acaba por se acertar em qualquer coisa. E entre outras propostas igualmente medianas, surgia “Uma Viagem até ao Infinito”.

“Uma Viagem até ao Infinito” é um daqueles casos exemplares de um certo tipo de estética Netflix; se a BBC tinha/tem os documentários com (digam em coro) “o selo de qualidade BBC”, a Netflix tem esta linha de ciência servida em saquetas (de que o maior exemplo talvez seja a série “Resumindo”). Nesse separador, como naquelas caixas de velhos CD em promoção nas bombas de gasolina, encontra-se de tudo – até coisas boas. E quando estamos enjoados de binge, mas já demasiado destreinados para nos expormos à previsível realidade-demasiado-real da velha televisão linear, vale a pena vaguear por ali e abrir um título pouco mais do que ao acaso. Na pior das hipóteses, aprende-se qualquer coisa.

[o trailer de “Uma Viagem até ao Infinito”:]

O infinito não é um tema fácil de ilustrar. Em matemática, tem por símbolo aquela espécie de 8 deitado; na vida, confunde-se com a cara de empate de Fernando Santos. Mas, quando se tem de fazer um filme inteiro sobre o assunto, a questão complica-se. A maior virtude de “Uma Viagem ao Infinito” está, justamente, em encontrar um conjunto de soluções visuais inventivas para dar corpo ao assunto e que lhe permite ir fugindo ao típico desfile de cabeças falantes. O melhor exemplo disso acontece quando assume uma interrupção numa entrevista para deixar passar um comboio que se deixa ouvir e desenha esse mesmo hipotético comboio passando atrás da entrevistada. Inútil, mas divertido.

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Não por acaso, a realização é dividida entre dois diretores, Jonathan Halperin, que vem do documentário televisivo de imagem real e também coassina o argumento, e Drew Takahashi, proveniente da animação. Aqui e ali, deixamos as palavras abstratas e damos por nós num cartoon saído da Looney Tunes, daqueles feitos nos anos 60, mas que, a nós, nos confortaram o crescimento durante os 80.

Partimos da experiência individual da perplexidade infantil perante a sensação ou ideia de infinito, para ouvir matemáticos, físicos e filósofos tentarem a sua melhor explicação para o assunto. Será o infinito um número? Uma ideia? Um lugar? Provavelmente todos, diz alguém. Será que existe fora da nossa cabeça? Porque é uma ideia matemática tão evidente e lógica é tão difícil de encontrar correspondência no mundo que temos por real? Será o universo infinito, como nos habituámos a ouvir dizer que é, ou o infinito é só, fundamentalmente, uma emoção, como levanta, a dado passo, outro convidado?

De capítulo em capítulo, passamos de ideias relativamente evidentes ou estéreis a concetualizações complexas, das que nos deixam a sonhar ou dão um nó no cérebro (o que quer que aconteça primeiro). Como a ideia do hotel infinito. Ou a de que, dentro de algo pequeno, pode estar algo maior. E dentro desse algo maior, algo maior ainda. Ou a da caixa onde deixamos uma maçã a apodrecer e onde um dia, considerando um calendário infinito, voltará a existir uma maçã. Ou este postulado segundo o qual tudo o que pode acontecer, acontecerá e acontecerá infinitamente – o que significa, no limite, que todos existimos em muitos outros lugares do universo, em cópias perfeitas, mas eventualmente com histórias diferentes, resultado de outras escolhas ou combinações. (sim, Fernando Santos. Continuamos a falar consigo.)

“A Trip to Infinity”, uma hora e 19 de ciência em pó para desenjoar do “entretenimento”. No fim, queira notar os títulos que a Netflix propõe como semelhantes: de buracos negros a Shania Twain.