Consciente de que seria pressionado pela oposição em peso, o Governo chegou esta quinta-feira ao Parlamento preparado para tentar mostrar serviço e novas propostas para mitigar o “drama” do crédito à habitação. Por entre anúncios de medidas dirigidas à banca, o Executivo quis, ainda assim, deixar alertas às famílias — vai ser preciso que “preparem” os seus orçamentos para o que aí vem. E acabou por não convencer os partidos de que as novas propostas tragam consigo um impacto real.

A tensão foi especialmente patente entre o Bloco de Esquerda, o partido que pediu o debate — e que apresentou um pacote de cinco propostas para combater o problema — e o Executivo. Foi a bloquista Mariana Mortágua que começou, desde logo, por desafiar os deputados do PS a não assumirem o papel de “maioria de bloqueio” e a darem resposta às famílias que estão a sofrer com o disparar das prestações da habitação.

Apesar da tensão, o Bloco acabaria o dia com uma vitória no bolso: o partido conseguiu fazer aprovar, com a abstenção do PS, a renegociação das condições de crédito quando estiver em causa uma taxa de esforço de mais de 50% ou que varie em mais de dois pontos percentuais, em casos de habitação permanente e em imóveis que não ultrapassem os 250 mil euros. Já o Livre viu aprovada, também com o PS a abster-se, uma proposta de um regime de prestações constantes e mistas e que permita a renegociação dos créditos quando a taxa de esforço supere a recomendada pelo Banco de Portugal.

O “drama” que o Governo quer resolver com propostas para banca

Que o problema é um “drama” real, ninguém — nem o Executivo — negou. O secretário de Estado do Tesouro, João Nuno Mendes, foi o responsável por trazer novidades ao plenário, em tom cauteloso. Reconhecendo a “sensibilidade” e “relevância” da questão, criticou os projetos dos partidos por não “respeitarem as disposições contratuais” e prometeu que o Governo responderá ao problema em três frentes: no Orçamento do Estado, no acordo de rendimentos que está a negociar na concertação social e num novo diploma dirigido à banca.

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As novas medidas, entre as quais se conta a suspensão das comissões de amortização antecipada ou a extensão dos prazos, não invalidam, frisou, que se possa alimentar a “ilusão” de que se está a acabar com as taxas de juro. “Temos de ter a seriedade de dizer às pessoas a realidade para a qual temos de planear os nossos orçamentos familiares. Esta é a realidade”.

Juros do crédito à habitação. Governo levanta o véu sobre algumas medidas que vai exigir à banca

Os anúncios não acalmaram o Bloco: a “esperança” com que começou a ouvir a intervenção “desapareceu” rapidamente ao ouvir o governante, atacou logo Mariana Mortágua, criticando o tom “sobranceiro” do secretário de Estado e rejeitando “lições de economia”.

“Habituem-se, planeiem melhor, a responsabilidade é vossa”, ironizou a deputada, resumindo a intervenção “confusa” de João Nuno Mendes. “Ou a proposta do Governo não ter qualquer impacto ou tem — e assim vai alterar as condições contratuais”, avisou. “Acabou de perder o argumento para rejeitar as propostas do Bloco. Diga às pessoas como vão viver a partir de janeiro, porque habituem-se não me parece um argumento inteligente”.

No pingue-pongue com Mortágua, João Nuno Mendes voltou a tomar a palavra para garantir que a sua intervenção foi marcada por uma grande “honestidade e seriedade”, insistindo que “como conhecedor dos mercados e com a prática de carreira que tem”, recusa dizer que as taxas Euribor estejam fora do normal ou apoiar medidas que coloquem em causa a segurança jurídica dos contratos com os bancos. “Nessa matéria não concordamos”.

Já as propostas do Governo, insistiu, mostram que o Executivo “conhece a lei” e tem “coragem” de “carregar nos pontos que podem fazer a diferença para conseguir coisas objetivas”. “Não temos lógica de apresentação de propostas que no final do dia parece que resolvem os problemas todos, mas enganam as pessoas pela ilusão de uma facilidade que não terão”, atirou. “Esta é a realidade, não escondemos o problema no mercado habitacional e a necessidade de intervir”, concordaria depois a secretária de Estado da Habitação, Marina Gonçalves.

“Foi uma intervenção muito cuidadosa, porque estava a pisar gelo fino: ao mesmo tempo que apresentava uma proposta genérica, uma palavra de esperança, avisava que as coisas vão ser sempre assim”, atacou o social-democrata Paulo Rios de Oliveira. “Qual é o impacto dessas medidas? Quantas famílias, quantos contratos? Com isso ficamos um bocadinho mais convencidos”.

Oposição pressiona, mas sempre com receitas diferentes

Do lado da oposição, não houve acordo sobre as soluções — BE, PCP, Chega e Livre apresentaram propostas — e só se encontrou consenso num ponto: a insuficiência das respostas do Governo. Os ataques foram cruzados entre os partidos, com uma picardia latente entre liberais e bloquistas (“o desespero aproxima-vos do Chega”, chegou a atirar Mortágua) e o Chega a aproveitar para picar o PSD por não ter trazido propostas próprias ao debate.

O Bloco acabou o debate, de resto, a disparar em todas as direções. O PSD não apresentou qualquer proposta porque foi “posto no lugar” pela banca, sugeriu; a IL foi, por seu lado, “posta no lugar” pelo Governo, que parece agora “o melhor amigo” dos liberais. “Agora amanhem-se: é o que dizem a quem está prestes a ficar em casa”. Mas o que é “incompreensível”, remataria o líder da bancada bloquista, Pedro Filipe Soares, é que o Governo tenha o mesmo discurso “teórico e ideológico” que a IL. “É mais uma vez o discurso do ‘eles aguentam’. As pessoas não aguentam e precisavam não de migalhas, mas de uma tábua de salvação”.

A Iniciativa Liberal, pela voz da deputada Carla Castro, começou desde logo por criticar as “restrições ao mercado imobiliário” que o Bloco propõe, frisando que o Estado nem sequer conhece exatamente qual é o seu próprio património (numa referência à proposta do partido para que os devedores em situação limite possam pedir a um fundo público que compre a sua hipoteca). Para a IL, o Bloco está a incentivar a incumprimentos dos créditos em “grande escala”. “Como é que se vai pagar o sonho imobiliário do Bloco?”.

Paulo Rios de Oliveira prometeu que o partido apresentará, já na fase de especialidade orçamental, propostas sobre o assunto. “O Estado falhou”, diagnosticou a colega de bancada Márcia Passos, garantindo que a política de habitação do Governo tem sido uma sucessão de erros “viciados de preconceitos ideológicos”, incluindo durante a pandemia. Ainda assim, também guardou algumas críticas para as medidas “irrealistas” e “instáveis” propostas pela esquerda. “E o Governo assiste esperando, quem sabe, que o PSD apresente medidas para depois reagir”, rematou.

Do lado dos comunistas, a líder parlamentar do PCP, Paula Santos, criticou o Governo por deixar a situação chegar a este extremo — tanto no mercado de habitação, onde há “sérios riscos de incumprimento das famílias”, como no geral pelo “agravamento” do custo de vida — e lembrou os despejos nos tempos da troika. O PS, atacou, não quer encarar as responsabilidades de manter as famílias numa situação de autêntico “sufoco” — “pelos vistos estão mais preocupados com a banca”.

PS defende as suas “medidas estruturais” e pede “boa vontade” ao BE

Quanto ao PS, a estratégia foi admitir a relevância do problema, mesmo enquanto chutava as medidas da oposição para canto; e ainda recuperar o passado da troika para culpar a direita — e o da geringonça para pedir “boa vontade” aos antigos parceiros.

Primeiro, dizendo que o Governo tem apresentado as “mais revolucionárias medidas estruturais” na Habitação e admitindo que essas políticas “não se resolvem de um dia para o outro”, como referiu o deputado André Pinotes Batista. Respondendo a Mortágua, o deputado lembrou que o rigor nas contas e as políticas na habitação não são medidas mutuamente exclusivas — “lutou, como eu lutei, contra uma direita que quis ir muito além da troika” –, recordou, recuperando o passado comum da geringonça.

E rematou: as medidas propostas pelo BE têm “virtudes”, mas a questão é se as respostas devem ser estruturais e de estímulo ao rendimento das famílias ou só sobre as relações contratuais, “questão mais complexa” que o Bloco refere nas suas propostas e na qual não se pode “passar por cima da supervisão das entidades europeias”. Assim, os socialistas quiseram devolver o desafio ao BE e perguntou aos bloquistas se estarão abertos ao diálogo em sede orçamental.

Nada que agradasse ao Bloco ou que desse resposta às medidas apresentadas pelo partido. “E então? E agora?”, perguntou Mortágua, em resposta às lembranças do PS sobre a troika e a geringonça. “Acha que um apoio de 125 euros é uma resposta estrutural?”. “Pede boa vontade ao BE mas prepara-se para chumbar todas as propostas“, previu a deputada, pedindo ao PS que mostre pelo seu lado essa “boa vontade” e deixe as propostas chegar à fase de especialidade.

Ainda no PS, Ivan Gonçalves voltou à carga lembrando que o Orçamento está à porta e que em outubro entra em vigor um conjunto de medidas de apoio às famílias. E, por outro lado, voltando a lembrar o passado de cortes do PSD — na fase da troika — para defender o presente do PS.

Já André Ventura apresentou as suas medidas dizendo que o drama da habitação é “real e sem precedentes” e atinge as famílias que já tiveram faturas pesadas a pagar pelas crises anteriores. “Muitos perguntam-se: por que tivemos de pôr tanto dinheiro nos bancos se agora não nos salvam? É muito injusto”.

Defendendo propostas como a isenção de IMI em prédios de habitação durante a vigência do PRR, atacou ainda o excesso de impostos: “São portugueses e estrangeiros de mais a viver dos que trabalham”. Pelo Chega, a deputada Rita Matias ainda vem lembrar as medidas adotadas pelo regime húngaro, de Viktor Orbán, semelhantes às do partido, elogiando-as — e desafiando o PS a desistir de “brincar” às propostas e de desistir do “preconceito ideológico”.

Do lado do PAN, também Inês Sousa Real falou em aumentos “asfixiantes” das prestações e da perda de poder de compra, um cocktail “inaceitável” e que não pode “esperar” pelo Orçamento do Estado. “É preciso propostas no imediato, para o crédito à habitação e o acesso ao arrendamento”, frisou.

Já pelo Livre, Rui Tavares apresentou as propostas do partido chamando às taxas do crédito à habitação “uma bomba relógio”, defendendo maiores margens para a renegociação das taxas.

O Bloco tinha avançado com um pacote de medidas que incluíam um programa para apoio à habitação financiado por uma taxa sobre a banca, um regime excecional de moratórias ou um limite à taxa de esforço. O PCP tinha apresentado várias medidas para proteger proprietários e arrendatários, incluindo congelando hipotecas de habitação permanente; o Livre para garantir uma margem de renegociação maior; o Chega várias propostas onde se contava o aumento da dedução de despesas de habitação no IRS, assim como o PAN.