“Das Profundezas” começa com uma reportagem na televisão. 1961, a Torre Pirelli em Milão é descrita com aquele fascínio único, absorvente, da comunicação social pela verticalidade. Na reportagem, vemos uma equipa de filmagens a subir num elevador exterior, filmando, também, o que se passa no interior. Mais do que um contraponto face ao lugar para o qual o mais recente filme de Michelangelo Frammartino (“As Quatro Voltas”) nos leva — uma gruta –, as filmagens da Pirelli são um exemplo da apoteose do mediático, do fascínio que existe pelas grandes dimensões e pela nossa vontade natural de subir. “Das Profundezas” propõe o contrário, descer, e nessa viagem reencontrar um pouco da humanidade que existe no contacto com a natureza.
Frammartino, que recebeu por este filme o prémio especial do júri no 78.º Festival de Veneza, recria o momento em que, no verão de 1961, o Grupo Espeleológico Piemontês começa a descer uma gruta na Calábria, para então dar de caras com a segunda gruta mais profunda do mundo, o Abismo de Bifurto. Há muitos filmes sobre viagens a cavernas e grandes cineastas já as filmaram – Werner Herzog, com “A Gruta dos Sonhos Perdidos”, é um dos exemplos mais populares –, mas o filme do realizador italiano não é meramente funcional ou recreativo. Vai além da mera revisitação de um ato e transporta o espectador para essa mesma vivência.
A gruta que se vê no filme é mesmo a de Bifurto. Não há artifícios. A inexistência de diálogos convida quem vê a procurar uma história de espaços, dimensões nos sons que acompanham o cenário. Frammartino fez-nos esperar mais de uma década depois de “As Quatro Voltas” (2010), mas reencontramo-lo e às suas ideias como se o tempo não tivesse passado. “Das Profundezas” é uma experiência de humanidade através do cenário aparentemente improvável que é uma gruta. Falámos com o realizador via Zoom, sobre como foi levar essa experiência do real, da paisagem, para o cinema.
[o trailer de “Das Profundezas”:]
O que o levou a tornar o Abismo de Bifurto num filme?
É localizado no Parque Nacional de Pollino, na Calábria, onde já tinha filmado em “As Quatro Voltas”. Continuei a visitar essa montanha, porque tem uma vegetação e uma fauna de elite. É fascinante. Mas não sabia que aquela paisagem incrível escondia uma outra, subterrânea. É uma segunda paisagem fascinante, que está escondida. Quem explora este mundo subterrâneo, quem pratica espeleologia, normalmente é tímido e não partilha muito as suas explorações. Para mim foi uma grande descoberta, quando comecei a entrar no Bifurto, comecei também a saber que esta caverna, profunda, de seiscentos metros, tinha uma história secreta mas muito interessante: é a segunda gruta mais profunda do mundo.
Porquê recriar a expedição de 1961?
Essa expedição é pouco conhecida. Fala-se muito das expedições verticais do Evereste, mas pouco se fala das expedições ao abismo. E é uma espécie de contradição. Numa época da visibilidade, em que a televisão começa a ganhar popularidade, há um grande fascínio por tudo o que está no alto, há o Yuri Gagarin no espaço, há a construção do edifício Pirelli. Há este fascínio pela verticalidade, pelo alto, mas a história da expedição, que também é vertical, mas para baixo, não é tão conhecida. E é do mesmo ano. E hoje vivemos numa época em que publicamos tudo, publicamos de imediato. Se não publicamos, não tem sucesso. É importante documentar. Na expedição de 1961 há o culto da experiência, não era importante as pessoas saberem, era mais importante vivê-la. E, para mim, isso é muito interessante.
Já tinha entrado em alguma caverna?
Sim, mas não era difícil. Em 2013. Mas entrei no Bifurto em 2016, quando comecei a pensar que poderia levar o projeto para a frente. O início foi muito difícil, fisicamente e psicologicamente. Venho do desporto, movo-me muito, mas a verticalidade, o abismo, era difícil para mim. Demorei cerca de um ano até me sentir tranquilo para descer a caverna.
Preparou-se fisicamente?
Sim, treinámos durante dois anos. E isso fez parte do processo de trabalho por outra razão: estávamos a fazer estudo de localizações e a perceber os melhores locais para colocar as câmaras. A minha equipa de som trabalhou durante dois anos, dois anos que foram independentes das filmagens. Registámos o som em Dolby Atmos, que é um sistema muito sofisticado, e por isso foi necessário colocar vários microfones. E movermo-nos num espaço como este não é fácil, por isso a minha equipa trabalhou durante anos para resolver todas as dificuldades. Trabalhámos na caverna real, descemos até 400 metros. Não foi fácil, foi mesmo difícil.
Como é que consegue ter a imagem tão viva e colorida num local tão frio e escuro?
Isso é graças ao Renato Berta, o diretor de fotografia. Ele é um gigante, trabalhou com o Manoel de Oliveira, com o Alain Resnais… Para ele, o escuro é um erro na fotografia. E no nosso filme o escuro era muito importante, testámos com vários sensores para ter a fotografia certa.
Quantas horas filmava por dia? Imagino que fosse difícil filmar muitas…
Era difícil de controlar. Quando descíamos grandes profundidades, demorava seis, sete horas, mas não era controlável o tempo que filmávamos. Planeámos cerca de quatro semanas de filmagens nas grutas e foram seis. Foi um filme difícil de controlar.
Se não tivesse a luz certa no exterior, imagino que também fosse difícil filmar no interior.
Gosto de filmar o real, gosto de filmar um contributo da realidade, de não haver um controlo de tudo. Ter controlo absoluto é a morte do filme. Contudo, a dimensão não controlável deste filme é muito importante. Na gruta não queria usar luz, as únicas luzes que são usadas são dos capacetes. Isto tornava tudo imprevisível, bastava um deles colocar o pé mal, para iluminar uma zona que não esta prevista. Esta dificuldade de controlar era muito importante para mim, porque permitia que tudo estivesse sempre em constante transformação: e isso foi muito estimulante para mim.
Porquê a opção de não ter diálogos e de criar uma experiência sonora tão intensa?
É um aspeto muito fascinante da espeleologia, na gruta o som é interessante. Por exemplo, para explorar uma caverna, a primeira coisa que ele faz é lançar um objeto e escutá-lo. Quando se manda algo, ouve-se um som. E com esse som começa-se a imaginar a gruta, como é, do que é feita, o quão profunda é, o quão larga é. E é muito belo, porque quando se entra, com a luz, a gruta mostra uma forma definitiva, é um poço de trinta metros. Mas o som é muito estimulante, democrático. E no filme é importante por causa disso, porque permite ao público imaginar o espaço, o Bifurto. Queria que o filme fizesse a gruta falar, que a paisagem, a matéria, tivesse todo o protagonismo.