O presidente do Comité Olímpico de Portugal (COP), José Manuel Constantino, disse esta sexta-feira à Lusa que o assédio sexual no desporto português, “uma chaga” na sociedade, não é um fenómeno novo, faltando “articulação de estratégias de combate”.

Não creio que as evidências que tenham ocorrido no desporto sejam de natureza distinta das que ocorrem noutros contextos sociais. Não há dados estatísticos que nos permitam ter uma evidência de que no mundo do desporto estes casos ocorrem em maior número do que em outras dimensões sociais”, explicou o dirigente, em entrevista à Lusa.

O assunto voltou à ordem do dia após várias futebolistas que alinharam no Rio Ave em 2020/21 terem denunciado, numa notícia publicada na semana passada pelo jornal Público, ações de assédio sexual do então técnico do clube de Vila do Conde, Miguel Afonso, que atualmente era treinador do Famalicão, tendo também o diretor desportivo, Samuel Costa, sido alvo de um processo disciplinar.

Depois do treinador, o diretor: Famalicão suspende Samuel Costa após denúncias de assédio sexual

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Como “não é a primeira vez” que o assunto surge, o desporto não é “um mundo à parte das restantes práticas sociais”, pelo que o assédio sexual, e o abuso, “é também uma chaga” neste setor, “que precisa de ser denunciada e combatida”.

“Que todos os casos conhecidos possam ser objeto de denúncia, para serem avaliados e eventualmente sancionados. Simultaneamente, trabalhar no sentido da educação e formação cívica, de modo a que estas práticas não possam ocorrer no mundo do desporto. É absolutamente indispensável, sobretudo para as famílias, dar sólidas garantias que o mundo do desporto combate estas práticas e faz tudo ao seu alcance para evitar ocorrências”, declarou.

Entre vários alertas, José Manuel Constantino destaca este como um problema seja entre homens e mulheres, mas também entre homens e também entre mulheres, neste caso algo “que também existe no desporto mas está completamente camuflado e tem alguma incidência”.

Uma preocupação do presidente do COP é que Portugal possa acompanhar uma “tendência que se verifica em alguns contextos internacionais”, a do abandono de crianças e jovens do desporto, seja por vontade própria ou por decisão dos pais, após o surgimento destes casos.

O organismo que lidera emitiu, em abril de 2020, um comunicado que alertava para a prevalência destes fenómenos no universo desportivo, que persistiam “na opacidade”, louvando as denúncias feitas por figuras importantes de vários setores, de campeãs olímpicas a atrizes e outras figuras das artes.

Analisando o tipo de violência sexual incidente no contexto desportivo e lamentando a falta de “indicadores seguros quanto aos números”, antes uma “perceção de que a problemática não é residual”, o COP pedia “a criação de um conjunto de estratégias” para o combater.

“Acho que pregámos no deserto. Quando chamámos à atenção para a necessidade de se articularem estratégias de combate quer ao assédio quer ao abuso, como outro tipo de problemas que ocorriam no seio dos sistemas desportivos, não tivemos grande eco nem retorno do ponto de vista das organizações quer com responsabilidades políticas, quer responsabilidades desportivas”, lamentou.

O COP sentiu-se “um pouco sozinho nesta matéria”, talvez por procurar “não ir por aquilo que é a agenda mediática, muito pressionante e à procura de respostas prontas sobre matérias que exigem ponderação, estudo e debate”, e chamou a atenção “para o risco que havia, no sistema desportivo português, para as questões de abuso e de assédio”.

“Ficámos um bocadinho sozinhos, isolados, nesta observação. Continuámos fiéis à nossa preocupação e, infelizmente, o tempo vem dar-nos razão, que é necessário trabalhar este tema, adotar procedimentos preventivos para que incidências desta natureza não ocorram, e quando ocorram encontrar mecanismos de denúncia”, notou.

Tendo em conta o panorama em Portugal, há “muito que caminhar, muito que fazer”, para que este fenómeno “não seja colocado apenas quando a agenda comunicacional o justifica”, porque surgiu uma denúncia ou algo que é tornado público.

“Ao longo dos anos, tem havido várias evidências de outras situações, algumas já esquecidas, que revelam que o assunto não é novo no sistema desportivo nacional”, reforçou, pedindo uma “atitude muito firme de combate a estas situações”.

Diana Gomes espera que denúncia abata “silêncio envolvido com vergonha” no desporto

A presidente da Comissão de Atletas Olímpicos (CAO), a ex-nadadora Diana Gomes, disse esta sexta-feira esperar que as recentes denúncias de assédio sexual no desporto possam ajudar a derrubar um “silêncio envolvido com vergonha” em torno do fenómeno.

“Sempre foi um silêncio envolvido com vergonha, com a vítima se achar sempre culpada face a assédio sexual ou outro tipo de abusos. (…) Acho ótimo que se estejam a quebrar estas barreiras”, explicou Diana Gomes, em entrevista à Lusa.

Se nunca passou por qualquer situação de assédio ou abuso sexual “na primeira pessoa”, soube “mais tarde, por amigas”, de três situações “que tiveram com treinadores” ao longo da carreira.

“Fiquei supertriste por elas, perguntei porque não falaram disso na altura. Todas me responderam: por vergonha, porque achavam que tinham sido provocadoras. Acabaram por assumir um bocado da culpa“, contou.

No que toca ao trabalho preventivo e de combate, Diana Gomes considera essencial “um sistema em que as vítimas sintam que vão estar protegidas, de que não vão ser elas postas em causa”.

Tem sido esse o caminho, denunciam e a vítima é dada por culpada. Falta-nos aquela trajetória final em que a vítima é realmente protegida, tem ferramentas e todo um sistema que a vai projetar e não expor, como muitas vezes acaba por ser o caso. Neste caso, tiveram de ser as jogadoras a dar o murro na mesa, a exporem-se para conseguir expor o tema”, lamentou.

Faltando “consolidar a parte final da solução”, a partir das plataformas de denúncia e o acompanhamento e resolução dado a cada caso, a presidente da CAO nota o “dever para com a sociedade” destes desportivas, envolvidos no trabalho em prol do desporto.

Nesse âmbito, reuniu recentemente com o secretário de Estado da Juventude e do Desporto, João Paulo Correia, para falar sobre o assunto, a partir de um grupo de trabalho no Governo ligado ao fenómeno.

Nessa reunião, falou “sobre o Observatório Nacional da Violência Contra Atletas”, do qual é embaixadora, e da dificuldade daquele organismo em “receber denúncias terminadas”.

“Muito poucas chegam ao final e muitas, crê-se, é por não verem uma solução. É mesmo por aí o caminho, e estamos a começar a pensar em algo para conseguir ajudar o sistema e todas as vítimas de violência”, afirmou.

Quanto ao caso concreto que tem sido discutido e mediatizado na última semana, espera “que a consequência corresponda ao que as atletas sofreram, e não algo leve”.

“Tem de haver um exemplo de que há um final que corresponde às expectativas das atletas, e eventualmente outros casos virão a aparecer”, atirou.